A Castanheira e o Despertar: Memórias de um Portugal Escondido

Foi nos invernos frios e nos verões ardentes de 1962 e 63, na pequena aldeia da Castanheira, junto a Caria, que comecei a ver o país como ele realmente era. Os meus pais trabalhavam na CP, em Alcains, e como a Escola Primária ficava longe, mandaram-me para junto dos meus avós, naquela aldeia isolada e pobre — muito pobre.

Os meus avós eram remediados, porque o meu avô que fora trabalhador da CP, estava já reformado. No entanto continuavam a tirar do campo parte do seu sustento.

A Castanheira era um retrato vivo do Portugal esquecido. Casas de pedra, chão de terra batida, o cheiro a lenha e a pobreza entranhada nas mãos calejadas das pessoas. Gente boa, humilde, mas submissa até à alma. Lembro-me de os ver quase ajoelharem, e de chapéu no ar em posição de reverência, quando passava o padre, o professor ou um qualquer ricaço ou até alguém vestido a rigor. O respeito — ou o medo — era sagrado. Na missa de domingo, iam todos, de roupa lavada e remendada, como se aquele fosse o único momento de dignidade permitido na semana. E mesmo sem nada, lá deixavam os tostões na bandeja, enquanto o padre vivia com conforto, distante da miséria que o rodeava.

Eu, miúdo de escola, depressa percebi que ali ser "o melhor aluno" não era grande mérito. Como dizia o povo: "Em terra de cegos, quem tem olho é rei." E era isso mesmo. Mas foi ali que os meus olhos se abriram — não por ser rei, mas por começar a ver.

Via homens curvados de sol a sol, mulheres que nunca paravam, e crianças que cedo deixavam a escola para ajudar na lavoura. A vida delas era uma repetição de cansaço: o campo, o gado, a casa, o vinho na taberna ao fim do dia. Havia risos, é verdade — o povo português nunca deixou de rir — mas eram risos curtos, quase envergonhados, abafados pela dureza dos dias.

O que mais me impressionava, mesmo sem ainda o compreender por completo, era a submissão. Aquele baixar de cabeça constante, aquela fé cega em tudo o que fosse autoridade. O padre, o professor, o regedor — eram todos senhores. E o povo, que nada tinha, parecia aceitar esse destino como inevitável, quase como vontade divina.

O peso da pobreza e o silêncio do povo

Com o tempo, percebi que aquela pobreza não era apenas falta de dinheiro — era falta de horizontes. Era um país fechado sobre si próprio, onde o saber era privilégio e a ignorância, garantia de obediência. Era um povo que sofria em silêncio, com dignidade, mas sem esperança.

Na Castanheira, aprendi mais do que em qualquer escola. Aprendi o valor do trabalho duro, mas também o preço da resignação. A fé era a única força que restava a muitos, mas também a corrente que os prendia ao conformismo. Era um mundo onde o destino não se discutia — aceitava-se. E isso, para mim, foi o mais difícil de entender.

O despertar da consciência

Foi ali, na Castanheira, entre o cheiro da terra molhada e o eco das badaladas da igreja, que nasceu em mim a necessidade de entender. Porque é que uns tinham tanto e outros tão pouco. Porque é que uns mandavam e outros obedeciam sem questionar. Porque é que aquele sofrimento era aceito como natural.

Desde então, nunca mais descansei enquanto não deslindei todos os porquês. E talvez seja essa inquietação — nascida entre o pó dos caminhos da Beira — que me acompanha até hoje. Porque compreender o país é, afinal, uma forma de tentar curá-lo.

"Compreender o país é, afinal, uma forma de tentar curá-lo."

As memórias dessa aldeia pobre, mas autêntica, são mais do que lembranças de infância. São o espelho de um Portugal que existiu — e que, em muitos aspectos, ainda existe. Um país de contrastes, de força e de submissão, de fé e de medo, de dignidade e de dor. E, sobretudo, de um povo que, mesmo na pobreza, nunca deixou de ser profundamente humano.


📖 Este texto faz parte das memórias pessoais sobre o Portugal rural dos anos 60 — um país esquecido, mas fundamental para entender quem somos.

📖 Este artigo tem continuação na crónica "A Outra Prisão: A Mente do Povo Português", publicada no blogue Fragmentos do Caos.

Artigo autoria de 📖 Francisco Gonçalves

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