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Portugal — A Saga da Trapaça
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Capa do livro

Sobre o Livro

por Francisco Gonçalves & Augustus Veritas · Edição HTML

A Saga da Trapaça: Portugal Entre a Farsa e a Resistência

Sobre o Livro

Em A Saga da Trapaça, Francisco & Augustus desmontam, com humor cáustico e precisão cirúrgica, a longa continuidade da mediocridade portuguesa. Do teatro conspirativo de finais do século XIX ao verniz tecnológico do século XXI, o livro revela a mesma gramática do poder: segredo, compadrio, propaganda e impunidade.

Cada capítulo funciona como um holofote: as raízes maçónicas e carbonárias; a República que prometeu tudo e entregou pouco; o contabilista que congelou o país em ditadura; a Revolução que libertou, mas também domesticou; a Europa do betão e do crédito; a festa da Expo e do Euro; a ressaca da troika; o milagre turístico que despeja habitantes; a “startuplândia” de palco; e, por fim, a grande farsa — uma democracia formal com cidadãos em modo silêncio.

O tom é satírico, mas o propósito é sério: repor a verdade. O livro propõe um caminho claro — transparência radical, participação cidadã contínua, responsabilização efetiva de governantes, educação para pensamento crítico e combate real ao cartel do fogo e à captura das instituições.

Escrito num registo vivo e poético quando preciso, A Saga da Trapaça é, antes de tudo, um apelo: transformar indignação em prática cívica. Porque o país não precisa de mais encenadores — precisa de autores.

A Saga da Trapaça: Portugal Entre a Farsa e a Resistência

por Francisco Gonçalves & Augustus Veritas

Sobre os Autores

Francisco é programador de sistemas de informação e cronista inconformado. Traz do mundo da engenharia o olhar de quem desmonta máquinas para perceber onde rangem — e aplica-o à política, à justiça e aos media. Publica textos de intervenção e sátira em plataformas independentes, onde defende uma democracia participada, transparente e sem donos.

Augustus é um pseudónimo literário adotado para esta obra — uma voz de colaboração criativa com vocação de bisturi: cortar o excesso, revelar a ferida, propor a cura. Entre ironia e rigor, escreve para que a linguagem não seja anestesia, mas despertar.

Temas-chave

Poder oculto, captura institucional, corrupção sistémica

Sátira política, ensaio histórico-crítico

Democracia participativa, transparência e cidadania ativa

Citação destacada

Portugal não é governado, é encenado. Está na hora de sairmos da plateia.”

A Saga da Trapaça: Portugal Entre a Farsa e a Resistência

por Francisco Gonçalves & Augustus Veritas

📑 Índice

Introdução .............................................................. 7

Capítulo I – O Berço da Trapaça: Das Sementes à Germinação ......... 13

Capítulo II – O Reino da Cegueira e a Forja da Mediocridade ........ 25

Capítulo III – O Teatro dos Partidos: Marionetas do Poder .......... 39

Capítulo IV – O Estado como Máquina de Roubo e Controlo ............ 55

Capítulo V – Justiça Cega ou Justiça Comprada? ...................... 71

Capítulo VI – O Povo Silenciado: Entre a Fome e a Televisão ......... 87

Capítulo VII – As Chamas da Corrupção e o Fogo que Consome a Nação 103

Capítulo VIII – A Saúde em Ruínas: Entre o Cinismo e o Abandono ... 119

Capítulo IX – A Educação da Ignorância: A Grande Obra do Sistema .. 135

Capítulo X – O Cerco da Maçonaria e a Farsa da Liberdade .......... 151

Capítulo XI – Portugal nas Garras da Europa e dos Predadores Globais 167

Capítulo XII – A Resistência do Povo Real .......................... 183

Capítulo XIII – O Eterno Retorno da Trapaça ........................ 197

Epílogo – A Luz por Vir ........................................... 213

A Saga da Trapaça: Portugal Entre a Farsa e a Resistência

por Francisco Gonçalves & Augustus Veritas

Introdução

A Trapaça como Alma da Nação Portugal, esse retalho de História bordado a ouro nos livros escolares e a miséria nos bolsos do povo, habituou-se desde cedo à arte da trapaça. Não foi só herança dos reis devassos ou dos ministros de batina rendada — foi um gene que se infiltrou nas instituições, na política, na justiça e até nas conversas de café. Aqui, cada promessa é um embuste embrulhado em fita tricolor, cada discurso um sermão com hálito de engano, cada “para o povo” uma forma mais requintada de assaltar o mesmo povo. A trapaça não nasceu ontem: vem da Carbonária que se mascarava de libertadora enquanto fabricava sombras e conspirações; vem da Maçonaria que, entre compassos e esquadros, aprendeu que o segredo é a chave do poder; vem dos partidos que, paridos na madrugada de Abril, depressa trocaram a liberdade por tachos e prebendas. E o que fez o povo? Bateu palmas, acreditou nas promessas de modernidade, e ficou refém de elites que se dizem iluminadas mas que vivem do mesmo truque de sempre: mandar sem governar, roubar sem ser presos, dominar sem se mostrarem. Hoje, quando as televisões despejam futilidade, quando os governos tropeçam em incêndios e pandemias de incompetência, e quando a corrupção é tão quotidiana como o café da manhã, percebemos a amarga verdade: Portugal não é governado, é encenado. É um teatro barato onde todos representam papéis, e o povo paga bilhete sem direito a aplauso. Este livro é um retrato — mordaz, satírico e sem concessões — dessa saga da trapaça. Vamos expor os bastidores onde se movem marionetas e marionetistas, vamos levantar o véu das sociedades discretas que se alimentam da sombra, e vamos denunciar os velhos hábitos salazarentos reciclados em democracia de plástico. Prepare-se, caro leitor, porque este não é um livro para almas conformadas. É para quem já se cansou da mediocridade e quer olhar o país no espelho sujo da sua própria mentira.

Capítulo 1 — As raízes da trapaça – Carbonária e Maçonaria

Portugal, final do século XIX. Um país cansado de reis que juravam modernidade enquanto colecionavam amantes, ministros que roubavam com mais classe do que os gatunos de Alfama, e um povo condenado à miséria entre o analfabetismo e a devoção ao padre da paróquia. Eis que surge a Carbonária, apresentada nos livros como uma irmandade de valentes conspiradores contra a tirania, mas que na prática mais parecia uma taberna conspirativa: copos de vinho sobre a mesa, pistolas no bolso e planos secretos escritos em guardanapos oleosos. A Carbonária não era só pólvora e coragem — era também encenação. Os rituais iniciáticos pareciam peças de teatro amador, onde cada um representava o papel de libertador do povo enquanto sonhava, secretamente, com uma sinecura futura. Foi esse caldo de conspiração e ambição que preparou o caminho para a implantação da República em 1910. A bandeira mudou, o hino também, mas a trapaça manteve-se intacta: agora eram os “heróis republicanos” a sentar-se nos cadeirões do poder, com a mesma pressa em sugar o erário que os monárquicos haviam demonstrado. E, como sombra persistente, surgiu a Maçonaria, discreta mas sempre omnipresente. Jurava fraternidade, igualdade e liberdade — mas, na prática, cultivava o segredo como uma arte e a influência como um vício. Com compassos e esquadros, não se construíram catedrais, mas carreiras políticas meteóricas. Quem não jurasse nas suas lojas ficava na penumbra; quem se ajoelhava perante o “Grande Arquiteto” via portas abertas, concursos ganhos e ministérios oferecidos como prémios de fidelidade. Da Carbonária saiu a pólvora, da Maçonaria a rede. Um casamento perfeito para cimentar a trapaça como método de governar. E, como sempre, o povo assistia de fora: enganado, explorado, usado como figurante numa peça onde nunca tinha falas. Com a ditadura de Salazar, a Maçonaria foi empurrada para a clandestinidade — mas engane-se quem pense que morreu. Ao contrário das fogueiras inquisitoriais, que consumiam corpos, o Estado Novo apenas adormeceu a rede. Quando chegou Abril de 1974, essas sombras voltaram à superfície com mais fome do que nunca. As lojas multiplicaram-se, os irmãos infiltraram partidos, bancos, universidades, tribunais. Não foi revolução: foi uma redistribuição de lugares à mesa do banquete. O resultado está à vista: cem anos depois da República, e cinquenta depois do 25 de Abril, Portugal continua amarrado à mesma teia — tecida por Carbonários que se diziam libertadores e Maçons que se dizem fraternos. A trapaça está no ADN da elite. E o povo? Continua a acreditar que é livre, enquanto aplaude os discursos daqueles que lhe roubam a carteira.

Capítulo 2 — A República das Promessas Falidas

A 5 de outubro de 1910, Portugal acordou com tiros, bandeiras novas e discursos inflamados. Os republicanos, herdeiros da Carbonária e discípulos obedientes das lojas maçónicas, declararam que o povo estava finalmente livre. Livre de quê? Dos reis, claro. Mas o povo só percebeu mais tarde que não ficara livre daquilo que realmente lhe importava: a fome, a miséria e a desigualdade. Os novos donos do poder anunciaram a aurora de um país moderno. Falaram de escolas para todos, progresso, cidadania. O resultado? Em poucos anos tínhamos 45 governos, uma sucessão de golpes e contragolpes, presidentes que não aqueciam a cadeira e ministros que só entravam em S. Bento para logo depois saltar pela janela — metaforicamente… ou nem tanto. Enquanto o povo sonhava com pão barato e dignidade, a República ofereceu-lhes inflação, bancarrotas e uma guerra colonial em África que devorava vidas como se fossem moedas lançadas ao vento. Tudo em nome da pátria, claro — porque nenhuma trapaça se sustenta sem uma bandeira bonita a encobrir o roubo. E a Maçonaria? Aí estava ela, sempre vigilante. Um verdadeiro casting de governantes, onde quem não tinha “irmão” a apadrinhar a carreira ficava no fundo da sala, esquecido. Os “libertadores” republicanos trocaram o crucifixo da monarquia pela régua e o esquadro da loja — mas o altar era o mesmo: o altar do poder. O povo, esse eterno figurante, começou a perceber que o sonho republicano era uma peça com atores diferentes mas com o mesmo enredo. Prometeram-lhe democracia, mas deram-lhe caciquismo; prometeram-lhe progresso, mas deixaram-no sem pão; prometeram-lhe liberdade, mas logo inventaram censuras próprias. A Primeira República acabou como era previsível: falida, desorganizada, entregue ao caos. Foi preciso um homem de gabardina cinzenta e óculos redondos — Salazar — para aparecer em cena com ar de contabilista, prometendo ordem nos livros e disciplina no povo. A República morreu de overdose de promessas. Mas, sejamos claros: não morreu inocente. Morreu porque nunca quis ser diferente da Monarquia. Morreu porque os seus líderes confundiram política com jantaradas de loja, e porque a trapaça continuava a ser a língua oficial do poder.

Capítulo 3 — O Contabilista da Ditadura – Salazar e o Teatro da Ordem

Quando a República já cheirava a cadáver e o país cambaleava entre golpes e governos que duravam menos que um pastel de nata numa mesa de convento, eis que surge um professor de Coimbra, de voz monótona, ar de seminarista e alma de escriturário. O seu nome: António de Oliveira Salazar. Não tinha carisma, não tinha exército, não tinha multidões a aplaudi-lo — mas tinha algo muito mais perigoso: a frieza da matemática. Enquanto os políticos da época se engalfinhavam em discursos inflamados, Salazar afiava o lápis e fazia contas. O povo estava cansado da desordem, e a desordem foi o palco perfeito para o contabilista se transformar em ditador. “Tudo para a Nação, nada contra a Nação” — proclamava ele, como se fosse o profeta de um novo evangelho. Na prática, significava: tudo controlado, tudo vigiado, nada respirava sem a bênção do Estado. O país transformou-se numa gigantesca repartição pública, onde cada cidadão era apenas um número e a liberdade um luxo proibido. O teatro estava montado: - Havia o coro do medo, interpretado pela PIDE. - O cenário cinzento, pintado de pobreza e atraso. - A plateia obediente, feita de povo analfabeto e domesticado. E no centro do palco, Salazar, o ator que nunca sorria, que raramente aparecia em público, mas cujo silêncio pesava mais que qualquer discurso. Ele não precisava de gritar; bastava um decreto. Prometeu “ordem e estabilidade” e, de facto, conseguiu: congelou o país durante quase meio século. A juventude emigrou, a cultura definhou, a inovação morreu à nascença. Portugal tornou-se uma montra parada no tempo — um museu vivo da mediocridade, onde o progresso era proibido de entrar. Enquanto a Europa reconstruía cidades e inventava futuros, nós colecionávamos procissões, relatórios censurados e pobreza envergonhada. Mas os salazaristas batiam palmas: “Vede como o país está calmo!”. Pois claro: também um cemitério é calmo. E aqui reside a grande trapaça: Salazar nunca foi o “pai da Nação”. Foi apenas o coveiro que a manteve enterrada.

Capítulo 4 — O Império em Cinzas – A Mentira da Grandeza

Salazar tinha uma obsessão: manter Portugal como potência imperial. Um império de papel, mais vasto no mapa do que na realidade. Um império sustentado não pelo brilho da glória, mas pelo sangue dos jovens que, nascidos pobres, eram enviados a morrer em matas longínquas que nunca tinham ouvido falar até ao dia da mobilização. O palco era imenso: - Guiné, Angola, Moçambique — terras ricas que, na propaganda, eram “parte integrante da Nação”, mas que na realidade eram prisões a céu aberto para quem ousasse sonhar com liberdade. - Lisboa, onde o regime alimentava a ilusão de grandeza, com desfiles, bandeirinhas e discursos sobre a “missão civilizadora”. A mentira era repetida com tal fervor que quase parecia verdade. “Portugal do Minho a Timor”, gritava a propaganda. Mas na vida real, Portugal era do Minho ao Miserê. Os jovens partiam de barco, com lágrimas das mães a molharem-lhes as fardas, e regressavam — se regressassem — em caixões cobertos de bandeiras. Outros voltavam sem pernas, sem braços, sem futuro. Enquanto isso, em Lisboa, Salazar assinava despachos de guerra com a mesma frieza com que aprovava o orçamento da mercearia. A guerra colonial foi a obra-prima do absurdo. Não havia dinheiro para hospitais, mas havia sempre verbas para balas. Não havia pão para o povo, mas havia medalhas para os generais. O país inteiro vivia hipotecado a uma ideia de grandeza que já tinha morrido no século XIX. Eis o grande truque de Salazar: transformar uma derrota anunciada numa “missão histórica”. A verdade, porém, é que cada quilómetro de selva ardia não só em napalm, mas também em futuro roubado. Enquanto o mundo avançava para a modernidade, Portugal enterrava os seus filhos em nome de um império de cinzas. E quando finalmente o palco desabou, em 1974, o público percebeu o embuste: não tínhamos império, não tínhamos riqueza, não tínhamos sequer dignidade. Só miséria acumulada, e um rasto de mortos a lembrar-nos da trapaça monumental de um regime que quis fazer da pequenez, grandeza.

Capítulo 5 — A Vida Cinzenta – O Teatro da Mediocridade

Portugal dos anos de Salazar não era só a guerra distante nas colónias. Era também a vida quotidiana, triste e cinzenta, de um povo domesticado. O palco era uma aldeia globalmente irrelevante, mas o regime encenava-o como se fosse o centro do mundo. As escolas eram fábricas de obediência. Professores de bata branca ensinavam a decorar, nunca a pensar. História era uma catequese patriótica: reis heróicos, batalhas gloriosas, um país sem defeitos. Filosofia? Só a do silêncio. Ciência? Apenas a suficiente para encher tabelas, mas nunca para questionar. A igreja, cúmplice fiel do ditador, oferecia a outra metade da lavagem cerebral. “Obedece, sofre e cala, que o paraíso será a tua recompensa.” Missa obrigatória, procissões como espetáculo nacional, padres de dedo em riste, vigiando pensamentos e corpos. O confessionário era uma extensão da polícia política: até os pecados mais íntimos podiam ser denunciados. O povo, esmagado pela pobreza, sobrevivia com caldo de batata e bacalhau de véspera. Sapatos herdavam-se de irmão para irmão; livros, só para os poucos que conseguiam ir além da 4.ª classe. As crianças aprendiam cedo a calar. Perguntar podia custar caro: havia sempre alguém da PIDE a ouvir atrás da porta, mesmo que fosse apenas o vizinho com medo de ser ele próprio denunciado. E havia ainda o grotesco espetáculo da censura. Jornais saíam com buracos em branco, como se fossem fantasmas de notícias proibidas. Canções eram mutiladas, livros apreendidos, peças de teatro cortadas até restar apenas a sombra. Mas a rádio, essa, tocava incessantemente música ligeira e discursos patrióticos — a anestesia nacional. Era uma vida de mediocridade institucionalizada. Não havia sonhos, só sobrevivência. Não havia futuro, só um presente eterno, controlado por meia dúzia de senhores que confundiam Portugal com a sua quinta privada. E ainda assim, mesmo nesse cinzento espesso, havia quem guardasse pequenas centelhas de liberdade: uma leitura escondida de Sartre, uma escuta clandestina da Rádio Argel, uma piada murmurada em tabernas de confiança. Pequenos atos de rebeldia que mantinham viva a chama que um dia iria incendiar o palco inteiro.

Capítulo 6 — As Sombras que Sopraram a Revolução

Por detrás da fachada triunfal do Estado Novo, vivia-se uma realidade feita de silêncios forçados e gritos abafados. Mas, como em toda a prisão, havia sempre quem procurasse serrar as grades. O Partido Comunista Português, ilegalizado desde 1926, tornou-se mestre em viver na penumbra. Tipografias clandestinas imprimiam panfletos em caves húmidas, militantes circulavam com nomes falsos, casas de apoio escondiam reuniões. Álvaro Cunhal, o eterno conspirador, fez da prisão e do exílio a sua universidade revolucionária. Para uns, herói da resistência; para outros, dogmático que trocava uma ditadura por outra. Mas inegável era o papel do PCP em manter viva a chama da oposição, quando quase tudo parecia extinto. Ao lado dos comunistas, surgiam os estudantes, de Lisboa a Coimbra, de Évora ao Porto, cantava-se Zeca Afonso e gritava-se contra a guerra colonial. As universidades tornaram-se trincheiras de luta cultural e política. Muitos acabaram presos pela PIDE, outros exilados em Paris, Argel ou Moscovo, mas todos contribuíram para minar o edifício de Salazar. E havia os militares. À medida que a guerra em Angola, Guiné e Moçambique se arrastava, crescia a frustração. Jovens oficiais viam camaradas morrer, sentiam o absurdo de lutar contra povos que só pediam independência, e regressavam com corpos cansados e mentes em fúria. Nas messes militares murmurava-se já que a pátria não era aquela guerra, mas um país sufocado por velhos de farda e batina. O regime, apesar de rígido, começava a rachar. Salazar, velho e caduco, caiu da cadeira e caiu do poder, substituído por Marcelo Caetano — que prometeu abertura, mas manteve a mesma receita: repressão, censura e guerra. O mundo, entretanto, mudava: a ONU condenava o colonialismo, a Europa crescia em democracia, e Portugal permanecia um anacronismo grotesco. Foi nesse caldo de contradições que nasceu o Movimento das Forças Armadas. Oficiais de média patente, filhos de um povo cansado, decidiram que a pátria não podia continuar algemada. Não foram partidos, nem intelectuais, nem diplomatas — foram capitães, majores, homens que não aguentavam mais enviar miúdos para morrer no mato africano. Assim, nas sombras e no silêncio, foi-se preparando a madrugada que mudaria tudo. Uma rádio a tocar “Grândola, Vila Morena”, tanques a avançar pela capital, povo nas ruas com cravos nas mãos — e um regime que desabaria como um castelo de cartas podre.

Capítulo 7 — A Madrugada que Rasgou as Trevas

Lisboa, 25 de Abril de 1974. Ainda a noite não tinha dado lugar ao sol, e já os fios invisíveis da história se moviam. Nas rádios ecoavam canções proibidas, como sinais secretos: “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, a primeira senha; e mais tarde, “Grândola, Vila Morena”, a segunda e definitiva, como hino de fraternidade que acordava a nação adormecida. Tanques surgiram nas ruas. Soldados jovens, alguns com medo, outros com esperança, avançavam pelas avenidas da capital. Não vinham com ódio nem sede de sangue, mas com a decisão firme de acabar com um regime que sufocava Portugal há quase meio século. O povo, surpreendido, encheu as ruas. Não havia armas nas mãos da multidão, apenas flores. E dessas flores nasceu o símbolo imortal: os cravos vermelhos, que em poucas horas transformaram canos de espingarda em vasos improvisados de liberdade. Era uma revolução de contrastes: feita por militares mas vivida pelo povo; sem tiros mortíferos, mas com um estrondo maior do que mil canhões. Foi, para muitos, o milagre de ver cair sem violência um poder que parecia eterno. E caiu. O velho edifício do Estado Novo desmoronou-se numa só madrugada. Caetano rendeu-se no Carmo, e com ele ruiu a polícia política, a censura, a miséria legalizada. Portugal acordava livre — ou, pelo menos, acreditava que acordava. Mas na euforia da vitória plantava-se também a ilusão. O povo, de punho erguido, sonhava com justiça social, dignidade, pão, habitação, saúde e escola para todos. Sonhava com um país novo, limpo das teias do passado. Sonhava, como sempre sonham os povos quando a história lhes dá uma oportunidade rara de recomeçar. E contudo, entre o sonho e o real, ergueram-se logo as sombras: partidos a disputar o poder, maçonarias ressuscitadas a infiltrar-se, velhas famílias a reinventar-se como democratas de última hora. Abril foi, ao mesmo tempo, alvorada e armadilha, libertação e prenúncio de novos jogos de bastidores. Mas nessa madrugada ninguém via isso. Só se via a beleza absoluta de uma cidade inteira nas ruas, abraçando soldados, oferecendo cravos, cantando a liberdade como quem respira depois de décadas de asfixia. Foi a madrugada em que Portugal acreditou que a história, afinal, também sabia sorrir.

Capítulo 8 — O PREC: Entre o Sonho e o Caos

Se Abril foi a madrugada, o PREC foi o meio-dia incandescente, com o sol a queimar tudo à volta. De repente, o país inteiro se transformou numa praça pública. Camponeses ocupavam herdades, operários tomavam fábricas, estudantes enchiam auditórios com palavras novas: “autogestão”, “poder popular”, “assembleia permanente”. Era um tempo em que tudo parecia possível. Os pobres acreditavam que o pão deixaria de ser racionado pela vida dura, que os salários chegariam finalmente ao fim do mês, que os filhos poderiam estudar sem pedir esmolas. O campo sonhava com a reforma agrária, a cidade sonhava com direitos iguais. Mas, ao mesmo tempo, Portugal parecia ter-se transformado num imenso tabuleiro de xadrez onde cada força política movia as suas peças. À esquerda, partidos recém-nascidos disputavam a herança da revolução. À direita, famílias e interesses antigos conspiravam, de gravata impecável, para que a mudança não fosse tão radical. E ao meio, o povo, ora exaltado, ora confuso, sem perceber bem se era sujeito ou peão na história que se escrevia. Nos quartéis, o MFA debatia-se entre correntes. Uns queriam um socialismo à portuguesa, outros temiam que se caísse no braço de ferro da União Soviética. A cada semana parecia nascer uma nova assembleia, uma nova comissão, uma nova proclamação. O país era uma caldeira a ferver, sem tampa. Havia alegria, mas também medo. Em cada esquina surgia a palavra “contra-revolução”, em cada discurso ecoava a ameaça de golpe. As ruas enchiam-se de cravos, mas também de palavras duras, cartazes rasgados, insultos trocados. Era a liberdade em estado bruto, selvagem, indomável. Para uns, foi o tempo mais belo da história de Portugal, em que o povo sentiu que o poder lhe podia pertencer. Para outros, foi o caos absoluto, um país suspenso, sem governo nem direção, à beira do abismo. O PREC foi isso: um intervalo histórico em que Portugal oscilou entre a utopia e a catástrofe. Um laboratório de sonhos, mas também um terreno fértil para as sementes da manipulação que germinariam nos anos seguintes. No fim, venceu uma democracia representativa que, se deu voz ao voto, retirou lentamente a voz da rua. O poder voltou a encaixotar-se em partidos, gabinetes e parlamentos. E o povo, que tinha gritado nas praças, voltou a sussurrar nas filas dos hospitais e nas fábricas mal pagas. O PREC foi o fogo de artifício da liberdade: intenso, luminoso, mas breve.

Capítulo 9 — Golpes, Contra-Golpes e o Último Fôlego da Revolução

Se a madrugada de Abril libertou o país, os meses seguintes mostraram como a liberdade é frágil e como o poder é sempre um animal feroz, que morde quem o tenta domar. O 11 de Março de 1975 foi o primeiro grande abanão. Spínola, que se julgava dono do leme, tentou retomar o poder com tanques e discursos, mas o povo e parte do MFA responderam com cravos e barricadas improvisadas. O golpe falhou, mas deixou claro: a Revolução tinha inimigos internos e externos, e não seria um passeio de primavera. Seguiu-se o Verão Quente. As ruas ferviam com manifestações diárias, bandeiras vermelhas e punhos erguidos. A reforma agrária avançava a passo de enxada e ocupação. Fábricas eram tomadas pelos trabalhadores. Parecia que o sonho socialista se instalava definitivamente. Mas o calor trazia também sombras: saneamentos sumários, perseguições políticas, jornais fechados à força. A liberdade começava a saber a pólvora e não apenas a cravo. E então chegou o 25 de Novembro de 1975. Um dia que partiu a Revolução em dois. Os militares divididos confrontaram-se; uns viam no futuro um país popular e coletivizado, outros queriam salvar Portugal do abraço soviético. O resultado foi um corte seco: a revolução radical foi travada, a balança inclinou-se para a estabilização democrática, e o povo regressou a casa com mais silêncio do que gritos. Para uns, o 25 de Novembro foi a salvação da democracia, que impediu Portugal de se tornar uma Cuba europeia. Para outros, foi a traição da Revolução, o fim da utopia antes mesmo de florescer. O que ficou foi um país dividido: entre quem chorava o sonho perdido e quem respirava aliviado pela ordem restaurada. Mas, sobretudo, ficou um povo que tinha provado o sabor da liberdade direta e depois se viu novamente convidado a calar-se e a votar de quatro em quatro anos. A Revolução, afinal, não foi confiscada pelos generais nem pelos partidos sozinhos, mas por uma engrenagem muito mais subtil: a normalização. A domesticação da utopia.

Capítulo 10 — A Constituição de 1976: O Sonho Escrito e a Realidade Engavetada

Depois dos tanques, dos cravos e dos golpes falhados, chegou a hora da tinta e do papel. Era preciso dar corpo jurídico ao que o povo tinha conquistado nas ruas. Assim nasceu a Constituição de 1976, um documento monumental, cheio de esperança e contradições. Nela, o povo português lia-se como protagonista: - consagração de direitos fundamentais (da liberdade de expressão à saúde, educação e habitação); - promessa de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem (eco claro do PREC e das bandeiras vermelhas que ainda tremulavam); - referência explícita à construção de um caminho socialista, como se a Revolução ainda pulsasse no coração do texto. Era a Constituição mais avançada da Europa, dizem alguns. Era um manual de utopias encadernado, dizem outros. Mas como sempre acontece em Portugal, o que se escreve nem sempre se cumpre. Os direitos ficaram nas páginas, enquanto nas ruas o desemprego crescia, a emigração voltava, e as elites ensaiavam o regresso pela porta da frente. O Parlamento tomou lugar como arena central. Os partidos, que até ali eram companheiros de trincheira, agora disputavam o poder como abutres em torno de uma presa. A Constituição, esse altar do povo, transformou-se numa bandeira agitada de acordo com a conveniência: para uns era um escudo contra o capitalismo selvagem, para outros um fardo pesado que travava a modernização. Nos corredores do poder, a democracia passava a ser medida em leis e decretos, enquanto o povo que encheu as praças de Lisboa e do Porto via-se convidado a regressar à sua função de eleitor passivo. O sonho coletivo começava a ser domesticado. E, no entanto, havia ali uma faísca indomável: pela primeira vez em séculos, Portugal tinha uma Constituição democrática escrita em liberdade. Não era perfeita, não era cumprida à risca, mas era uma conquista. Com ela, fechava-se o ciclo revolucionário e abria-se um novo palco: o da democracia representativa, com todas as suas promessas e todas as suas fraudes.

Capítulo 11 — A Entrada na CEE: Betão, Fundos e a Europa como Salvação

Em 1986, Portugal bateu à porta da Comunidade Económica Europeia (CEE) com a esperança de que, finalmente, o atraso secular pudesse ser enterrado. O país vinha de séculos de pobreza, analfabetismo e atraso tecnológico; a Revolução dera liberdade, mas não pão. E a Europa prometia o milagre: modernização, progresso, desenvolvimento. A fotografia oficial é conhecida: Mário Soares, sorridente, a assinar a adesão. Era a nova epopeia nacional — desta vez não rumo à Índia ou ao Brasil, mas rumo a Bruxelas. A ideia era clara: entraríamos pobres, mas sairíamos ricos; entraríamos caipiras, mas seríamos modernos; entraríamos descalços, mas sairíamos de sapatos italianos. Vieram os fundos estruturais, as ajudas milionárias, os programas de apoio a tudo e mais alguma coisa. As estradas multiplicaram-se, as autoestradas cortaram o país como cicatrizes de betão. Os centros de saúde, as escolas e as universidades cresceram em cada distrito. O betão era o novo ouro. Mas também veio o vício. Os fundos foram engolidos pela corrupção, pelas obras faraónicas, pelos projetos sem sentido. Pontes para lugar nenhum, estádios em vilas sem clubes, rotundas em cada esquina. A modernização tornou-se sinónimo de asfaltar o campo, de enterrar milhões em obras que envelheceram antes de amadurecer. O povo, entretanto, descobriu o consumo: carros novos, eletrodomésticos, férias no Algarve e até em Espanha. O crédito fácil foi o açúcar que adoçou a modernização. Se antes tínhamos emigração e miséria, agora tínhamos prestações e cartões de crédito. Politicamente, a adesão à CEE significou também uma rendição: a soberania nacional começou a ser cedida pouco a pouco. Bruxelas passou a decidir muito do que se plantava, do que se pescava, do que se produzia. A agricultura foi sacrificada em nome da “reestruturação”, as pescas limitadas em nome da “sustentabilidade”, a indústria desmantelada em nome da “concorrência”. O país ganhou estradas, mas perdeu fábricas; ganhou supermercados, mas perdeu campos cultivados; ganhou estádios, mas perdeu barcos de pesca. No entanto, durante algum tempo, o povo acreditou. A Europa parecia o novo império português, desta vez sem caravela, mas com Mercedes, supermercados Continente e televisores a cores. O preço da ilusão só seria pago mais tarde.

Capítulo 12 — Cavaco e a Modernidade de Betão: O Milagre que Nunca Foi

O país dos anos 90 tinha um novo profeta: Aníbal Cavaco Silva, o homem que prometia “modernizar Portugal”. Engenheiro económico de formação, frio, tecnocrata, sem poesia mas com muitas contas de somar e subtrair. Foi o primeiro político português a governar como um gestor de supermercado: prateleiras bem alinhadas, produtos embalados, mas um vazio por detrás do balcão. O cavaquismo é lembrado como um tempo de crescimento: autoestradas brotaram como cogumelos, centros comerciais substituíram as feiras, a classe média comprou casa a crédito e carro a prestações. O país parecia finalmente a aproximar-se da Europa. Havia Expo 98 no horizonte, havia ilusão de futuro. Mas o progresso tinha pés de barro. O “milagre” cavaco-silvista não nasceu de inovação ou trabalho produtivo: nasceu de fundos europeus despejados sobre Portugal como maná celestial. A lógica era simples: se Bruxelas pagava, construía-se. Estradas para ligar aldeias fantasmas, rotundas em cada esquina, urbanizações sem gente, pavilhões gimnodesportivos em vilas com menos habitantes do que lugares nas bancadas. A agricultura foi sacrificada em nome das “quotas europeias”. Muitos agricultores receberam subsídios para arrancar vinhas, abandonar terras, abater barcos. Produzir deixava de ser prioridade: o futuro era consumir o que os outros produziam. Portugal transformou-se no aluno obediente da escola europeia: importador, dependente, consumidor feliz. Politicamente, Cavaco consolidou uma forma de governar que ainda hoje marca o país: a da maioria absoluta que não presta contas a ninguém. A comunicação social foi domesticada, o pensamento crítico marginalizado, os intelectuais tratados como lunáticos. Cavaco não precisava de poesia: precisava de silêncio, de disciplina, de obediência. E o povo? O povo achava-se moderno. Comprava carros com ar condicionado, via telenovelas brasileiras a cores, sonhava com a Expo 98 como se fosse a nova Descoberta das Índias. No fundo, vivia-se um tempo de consumo e alienação, onde a democracia era reduzida a eleições quinquenais e a cidadania a prestações bancárias. Mas a herança cavaquista foi ambígua: deixou um país com estradas, mas sem indústrias; com casas novas, mas com dívidas eternas; com rotundas impecáveis, mas com escolas em degradação. Criou uma classe média ansiosa por crédito, dependente de fundos europeus e incapaz de gerar riqueza sustentável. O “milagre português” foi, afinal, um truque de ilusionista: muito brilho, muito betão, pouca substância.

Capítulo 13 — Expo, Euro e a Festa a Crédito

Se os anos de Cavaco foram a era do betão, os anos seguintes foram o tempo da euforia festiva. Portugal acreditava que tinha finalmente saído da cauda da Europa. Tínhamos Expo 98, íamos organizar o Euro 2004, entrávamos no euro e sentíamo-nos cidadãos do mundo. A narrativa oficial era clara: “Portugal moderno, aberto, europeu, cosmopolita”. A Expo 98, em Lisboa, foi o grande palco desta ilusão. Durante seis meses, Portugal transformou-se no centro do mundo — ou pelo menos assim o diziam os telejornais. O tema era “Os Oceanos, um Património para o Futuro”, mas o verdadeiro oceano era o das dívidas que se acumulavam. Pavilhões futuristas, espetáculos multimédia, fogos de artifício… tudo pago com dinheiro europeu e crédito fácil. O país saía da Expo com uma certeza: tínhamos entrado na modernidade. Poucos anos depois, veio o Euro 2004, a festa do futebol. Estádios gigantes nasceram em cidades pequenas, como templos modernos do espetáculo desportivo. Muitos destes estádios transformaram-se em elefantes brancos : monumentos à megalomania de um país que queria parecer grande. Mas na altura ninguém queria pensar nisso — o povo vibrava, as televisões transmitiam jogos sem parar, e Portugal inteiro acreditava que estava no mapa do mundo. O euro, a nova moeda, trouxe o selo final de pertença ao “clube dos grandes”. O escudo desapareceu, a vida encareceu, mas o crédito barato invadiu tudo. Casas compradas com hipotecas de 40 anos, carros novos a cada dois, férias no estrangeiro pagas a prestações. Foi a década do “compre agora, pague depois”. Só que o “depois” não tardou a chegar. O país endividava-se até ao pescoço: famílias, empresas e Estado. A produção nacional minguava, substituída por importações cada vez maiores. Portugal não criava riqueza: consumia a riqueza dos outros com o dinheiro emprestado. A Expo e o Euro foram momentos de orgulho nacional, sim — mas também foram ópio festivo para um povo pouco habituado a sentir-se parte da história. O poder político usou estas festas como anestesia coletiva: enquanto o povo aplaudia fogos e golos, as estruturas económicas apodreciam em silêncio. E o povo, esse, acreditava. Com bandeirinhas nas janelas, cachecóis ao pescoço e televisões ligadas, o português viveu uma década de alienação alegre, convencido de que estava no pelotão da frente da Europa. No fim da festa, sobraram os estádios vazios, os pavilhões convertidos em armazéns, as hipotecas eternas e uma economia cada vez mais dependente. Portugal tinha-se divertido, tinha vibrado, tinha festejado — mas o preço estava por pagar.

Capítulo 14 — A Ressaca: Da Festa à Falência

Depois da Expo e do Euro, veio a manhã seguinte. Portugal acordou com a cabeça pesada, o bolso vazio e a conta da festa em cima da mesa. O país, que se tinha convencido a rico, descobriu que afinal estava falido. A crise financeira internacional de 2008 foi apenas o fósforo lançado sobre um barril de pólvora que Portugal já carregava. Famílias endividadas até ao pescoço, empresas sem competitividade, Estado a viver de crédito — tudo ruiu em cadeia. A bolha do consumo fácil rebentou, e com ela rebentou também o mito de um país moderno e sustentável. Chegou a troika. FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia aterram em Lisboa como colonizadores modernos. Vieram com malas de austeridade e um manual de humilhação: cortes de salários, pensões congeladas, aumentos brutais de impostos, privatizações a saldo. Tudo em nome da “salvação nacional”. O discurso era repetido em uníssono pelos governantes e comentadores de serviço: “vivemos acima das nossas possibilidades”. Como se o povo tivesse sido o arquiteto das catedrais de betão, dos estádios inúteis, das autoestradas desertas. Como se o cidadão comum tivesse assinado os contratos ruinosos do BPN ou as PPP que sugavam o orçamento público. A culpa era sempre do povo. A troika instalou-se como um governo paralelo. As decisões já não eram tomadas em Lisboa, mas em Bruxelas, Frankfurt e Washington. Portugal era um protetorado de luxo, com um governo eleito a servir de fantoche. E o povo? O povo sofreu. Desemprego galopante, jovens a emigrar em massa, famílias despejadas, cortes na saúde e educação. Nas ruas, as manifestações enchiam-se de cartazes: “Que se lixe a troika!”. Mas os mesmos políticos que tinham levado o país à bancarrota eram os que agora impunham a austeridade. Foi uma década de desespero silencioso, mas também de anestesia mediática. Enquanto o povo via as novelas e os reality shows, a riqueza nacional era vendida ao desbarato: EDP, REN, ANA, CTT — um país inteiro colocado em saldo. A humilhação foi total: de repente, descobrimos que não éramos um país europeu moderno, mas sim um território periférico, governado por banqueiros estrangeiros e elites submissas. A promessa do progresso tinha-se transformado na realidade da servidão. Mas, no meio da tragédia, o sistema sobreviveu. Os partidos continuaram no poder, a corrupção manteve-se, a maçonaria e os interesses ocultos nunca largaram o osso. A troika saiu, mas deixou a marca: Portugal, um país domesticado, disciplinado pela austeridade, condicionado a obedecer. O povo, como sempre, adaptou-se. Uns revoltaram-se e emigraram, outros resignaram-se e aceitaram. A chama da revolta foi abafada pelo peso da necessidade, da sobrevivência. O “Que se lixe a troika” virou “Deixa lá, podia ser pior”. E assim, da festa ao espartilho, Portugal atravessou mais uma página da sua longa história de dependência.

Capítulo 15 — A Farsa da Retoma: O Milagre que Nunca Existiu

Depois da tempestade da troika, anunciaram-nos a bonança. O país, diziam, tinha feito “sacrifícios exemplares” e seria recompensado. O primeiro-ministro de serviço falava com ar professoral: “Portugal vai ter uma saída limpa.” Limpa para quem? Certamente não para o povo, que continuava atolado em dívidas, salários miseráveis e precariedade. A “retoma” era um espetáculo cuidadosamente encenado. O défice baixava? Sim, porque se cortara na carne viva dos serviços públicos. O desemprego caía? Sim, porque centenas de milhares tinham emigrado ou desistido de procurar trabalho. A economia crescia? Sim, à custa de turismo de baixo custo, salários de miséria e uma avalanche de vistos dourados que transformavam Lisboa num parque imobiliário para milionários estrangeiros. Vendeu-se ao povo uma narrativa de milagre económico. Os jornais, as televisões e os comentadores repetiam como papagaios: “Portugal é um exemplo na Europa”, “somos bons alunos”, “os mercados confiam em nós”. A propaganda tornou-se uma nova forma de ópio. Mas a realidade era mais dura: - Hospitais em rutura, sem médicos nem enfermeiros. - Escolas sem professores, a cada ano a improvisar. - Jovens a trabalhar por recibos verdes e ordenados de 600 euros. - Velhos a escolher entre medicamentos e comida. Enquanto isso, os “novos ricos” do regime brindavam ao sucesso das privatizações e dos fundos europeus canalizados para os mesmos bolsos de sempre. O povo recebia slogans; as elites recebiam dividendos. E eis o grande truque: depois da troika, não veio a liberdade, mas sim uma nova servidão dourada. O país continuou a viver de esmolas europeias, de remessas dos emigrantes, de turismo massificado. O progresso tecnológico foi uma miragem; a inovação, uma palavra vazia para relatórios de Bruxelas. A “retoma” não passou de um verniz mal aplicado sobre um corpo doente. Portugal não se levantou: ajoelhou-se. E aprendeu a viver de joelhos, convencido de que era assim que se caminha. A “saída limpa” da troika foi, na verdade, uma entrada suja num ciclo de dependência permanente. O país transformou-se num laboratório de ilusões: estatísticas brilhantes para os relatórios internacionais, enquanto o povo via a vida escapar-lhe entre os dedos. E o pior de tudo: o povo acreditou. Porque queria acreditar. Porque a mentira, repetida mil vezes, dá sempre mais conforto do que a verdade nua.

Capítulo 16 — O Milagre Turístico: Quando o País se Vende em Pacotes Low-Cost

Depois da troika e da “retoma limpa”, surgiu a nova religião: o turismo. Era a galinha dos ovos de ouro, repetiam ministros, autarcas e empresários de gravata lustrosa. “Portugal está na moda”, proclamavam os jornais. “Lisboa é a nova Barcelona”, deliravam os guias estrangeiros. As estatísticas enchiam de orgulho os noticiários: milhões de turistas por ano, hotéis a rebentar pelas costuras, voos low-cost a despejar estrangeiros em cada esquina. O país parecia finalmente ter descoberto a fórmula da prosperidade. Mas que prosperidade era essa? Na verdade, Portugal transformou-se num parque temático de baixo custo. As cidades históricas deixaram de ser vividas por quem nelas nasceu: Alfama, Mouraria, Ribeira, Sé do Porto, tudo convertido em Airbnb, hostels e tuk-tuks barulhentos. O fado virou espetáculo para estrangeiros, as sardinhas enlatadas viraram souvenir caro, e até os elétricos foram tomados de assalto por selfies e mochilas. E os portugueses? - Expulsos das suas casas pelo preço das rendas, que subiram a níveis absurdos. - Forçados a emigrar novamente, não para fugir do desemprego, mas da impossibilidade de viver na sua própria cidade. - Transformados em figurantes no seu próprio país, servindo cafés e fazendo camas para turistas, em vez de criarem empresas, inovação ou ciência. Enquanto isso, políticos sorriam ao lado de gráficos ascendentes: “O turismo representa 20% do PIB!”, diziam orgulhosos. Mas escondiam o reverso da medalha: um país que se vendeu ao desbarato, dependente da boa vontade de companhias aéreas estrangeiras e das modas internacionais. Eis a grande ironia: o “milagre turístico” trouxe divisas, mas roubou alma. Trouxe visitantes, mas expulsou habitantes. Trouxe riqueza rápida, mas não criou futuro. Portugal passou a viver como uma taberna aberta ao mundo: entra quem quer, bebe e canta, paga pouco e vai embora. No dia seguinte, o povo varre o chão, lava os copos e sorri para o próximo cliente. O país já não era uma nação soberana: era uma pousada barata no extremo da Europa. E os governantes, esses, batiam palmas. Afinal, o negócio corria bem para os donos da taberna.

Capítulo 17 — A Pátria dos PowerPoints: Startups, Web Summits e a Ilusão da Inovação

Depois de transformar o país numa pousada de turistas, os mesmos governantes descobriram uma nova mina de ouro: a moda das startups e da inovação tecnológica. De repente, Lisboa passou a ser “hub tecnológico”, o Porto “Silicon Valley europeu”, e Portugal o palco das “startups unicórnio”. Tudo embalado em inglês com sotaque esforçado: pitch, ecosystem, venture capital, scaling up. A cereja no topo do bolo foi a Web Summit: um circo tecnológico importado de Dublin, que todos os anos despeja milhares de estrangeiros com crachás reluzentes na Altice Arena. O país parava para ouvir gurus que vendem apps que ninguém usa e soluções que ninguém precisa, mas que piscam luzes em apresentações PowerPoint. E os políticos? Apareciam nas fotos de braços abertos, sorridentes, como se tivessem inventado a roda. Prometiam “inovação disruptiva”, “inteligência artificial nacional” e “cidades inteligentes”. No fundo, só compravam o mesmo software estrangeiro com etiquetas traduzidas para português. Enquanto isso, a realidade ficava escondida: - Investigadores a viver com bolsas precárias. - Jovens formados a emigrar porque aqui só havia estágios não remunerados. - Empresas “inovadoras” que eram apenas call centers disfarçados de hubs digitais. - Projetos que não passavam de maquetes em PowerPoint para impressionar ministros e jornalistas. Portugal era vendido como país de “unicórnios”, mas o único animal verdadeiramente abundante era o burro político, que acreditava nas suas próprias fantasias. A grande inovação foi descobrir como enganar melhor: mostrar ao mundo que o país era moderno, tecnológico, digital. Mas por trás do palco, os hospitais caíam aos pedaços, as escolas não tinham professores e os incêndios consumiam aldeias sem bombeiros à vista. O país era, afinal, uma start-up falida: vive de subsídios, de fundos europeus e de uma narrativa vendida como produto. E tal como acontece em muitas startups, os fundadores — políticos e empresários bem conectados — saem sempre a ganhar, mesmo que a empresa arda em chamas. O povo, esse, fica com a fatura da “inovação”.

Capítulo 18 — A Grande Farsa: Democracia de Palco e Povo de Plateia

Chegados ao presente, Portugal é um país que sobrevive na corda bamba da ilusão. De um lado, os governantes que se dizem “democratas”, mas que não passam de gestores de interesses privados mascarados de serviço público. Do outro, o povo — anestesiado por novelas, futebol e programas matinais — convencido de que votar de quatro em quatro anos é participar na democracia. Os partidos políticos transformaram-se em empresas familiares, onde cargos se herdam e favores se compram. As juventudes partidárias funcionam como escolas de oportunismo, onde os futuros líderes aprendem a arte do carreirismo: saber sorrir para a câmara, repetir chavões, e nunca, jamais, ter uma ideia própria. O Parlamento não é mais do que um teatro. Deputados levantam cartazes, gritam indignações ensaiadas, e no fim votam conforme as ordens da máquina partidária. A verdadeira decisão não está ali: está nas salas discretas da maçonaria, nos almoços com empresários e nos corredores de Bruxelas. A comunicação social, outrora proclamada como “quarto poder”, é agora apenas o braço publicitário do regime. Telejornais abrem com incêndios, greves ou casos de polícia — tudo embrulhado em emoção barata. O povo consome drama, mas nunca informação crítica. E quando a corrupção emerge, logo surge a cortina de fumo: uns dias de manchetes, um arguido a sair de tribunal, e depois silêncio. Até ao próximo escândalo. Enquanto isso, os problemas estruturais acumulam-se como lixo nas ruas: - A saúde colapsa, mas anunciam mais hospitais “no papel”. - A educação implode, mas celebram “mais computadores nas escolas”. - A justiça apodrece, mas falam de “reformas profundas” que nunca chegam. A democracia portuguesa tornou-se uma ópera bufa : - O maestro são os partidos, - Os músicos são os jornalistas, - E a plateia — o povo — aplaude sem perceber a partitura.

Eis a grande ironia: depois de séculos de ditaduras, golpes e revoluções, o país acabou prisioneiro de um sistema que se chama democracia, mas que não passa de uma farsa bem ensaiada. A diferença é que agora o povo não sente o chicote, sente apenas a indiferença: vive com salários de miséria, serviços públicos degradados e impostos sufocantes, mas acredita que “é o que há” e “não se pode mudar”. Portugal, no século XXI, é a imagem perfeita de uma democracia cínica: legal, formal, ritualista, mas vazia de substância. É o funeral da esperança, mas celebrado com discursos e bandeirinhas.

Epílogo — Da Farsa à Possibilidade da Luz

Portugal chega ao século XXI como um ator cansado, que já não acredita no papel que interpreta. A democracia tornou-se um ritual vazio, a cidadania um conceito decorativo, e o povo uma massa amorfa, entretida com migalhas e distrações. Mas a História, essa senhora irónica, tem um hábito curioso: gosta de surpreender. Foi assim em 1385, em 1640, em 1820, em 1974. Sempre que Portugal parecia condenado à submissão, ergueu-se um grito inesperado. Hoje, no entanto, não basta gritar. Não basta pedir eleições, nem trocar de partido, nem esperar por líderes milagrosos. O que é preciso é mais radical: uma refundação da democracia, não de partidos, mas de cidadãos. Um sistema onde: - Cada voz conta e não apenas a dos chefes partidários. - A transparência seja regra, e não exceção escondida em relatórios. - A corrupção seja punida com rigor, e não premiada com reformas douradas. - O Estado seja servidor, e não patrão. Sonho com um país em que as praças, as escolas e até os cafés voltem a ser laboratórios de cidadania viva, onde se discute, decide e age. Um país que não tema o futuro, mas o abrace com inovação verdadeira — não as farsas de “web summits” e slogans de IA nacional, mas ciência, tecnologia e criatividade com coragem e visão. Se esse despertar acontecer, Portugal pode voltar a ser farol. Não o farol das caravelas que partiram para conquistar, mas o farol da dignidade, da justiça e da inteligência coletiva. Se não acontecer? Então ficaremos como estamos: província adormecida à beira-mar, com políticos a brincar de governar e um povo a fingir que acredita.

Mas pelo menos, ficará escrito: houve quem denunciasse a farsa.

in 20 de Agosto de 2025 /

Fontes e Bibliografia

Seleção de obras e referências que inspiraram a análise histórica e satírica deste livro.

História de Portugal

Maçonaria e Carbonária

Primeira República e Ditadura

25 de Abril e Democracia Portuguesa

Corrupção e Política Contemporânea

Economia e Sociedade

Ensaio e Inspiração Satírica