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Capa do livro

O REBANHO E O MEDO DOS PASTORES E DOS CÃES

Uma reflexão filosófica-poética para as gerações futuras

Francisco Gonçalves & Augustus Veritas (Colaborador de IA )

in 04 September 2025

Índice do Livro

Prólogo – O Rebanho e a Sombra dos Pastores.

Capítulo 1 – O Instinto do Rebanho.

Capítulo 2 – O Pastor: A Arte da Manipulação.

Capítulo 3 – Os Cães: A Violência e o Medo.

Capítulo 4 – O Medo da Liberdade.

Capítulo 5 – As Cercas Invisíveis: Ideologias e Fronteiras.

Capítulo 6 – O Pastor Invisível: O Poder Económico.

Capítulo 7 – Os Cães Modernos: Tecnologia e Vigilância.

Capítulo 8 – O Cão de Guarda: A Polícia e a Ordem Imposta.

Capítulo 9 – O Curral Digital: As Redes e a Vigilância.

Capítulo 10 – O Consumo e a Lã: Como o Rebanho é Tosquiado.

Capítulo 11 – As Religiões e os Cultos: Os Deuses dos Pastores.

Capítulo 12 – A Política: O Pastoreio Moderno.

Capítulo 13 – A Economia: A Tosquia Eterna.

subCap a1- Mecanismos de concentração

subCap a2- Trabalho precarizado, vida exaurida

SubCap a3- Dinheiro, dívida e bancos

SubCap a4- Crises que tosquiam

SubCap a5- Consumo, obsolescência e publicidade

SubCap a6- Planeta finito, economia infinita?

SubCap a7- Linhas de fuga e sementes de futuro (pontos de política)

SubCap a8- Exemplos históricos (Portugal e Mundo)

SubCap a9- Exemplos portugueses – economia após 25 de Abril.

Capítulo 14 – Os Médias: A Voz do Pastor.

Capítulo 15 – A Escola: A Fábrica de Ovelhas Domesticadas.

Capítulo 16 – A Política: O Teatro dos Pastores.

Capítulo 17 – O Medo: O Chicote Invisível.

Capítulo 18 – A Tecnologia: As Novas Cercas Digitais.

Epílogo – Da Condição de Rebanho à Consciência Humana (antes “Capítulo Final”).

O REBANHO E O MEDO DOS PASTORES E DOS CÃES

Uma reflexão filosófica-poética para as gerações futuras

Francisco Gonçalves & Augustus Veritas (Agente de IA )

in 04 September 2025

“A política nasceu como a arte nobre de organizar a vida comum. Na ágora grega, não era espetáculo, era trabalho da razão: ouvir, argumentar, decidir. Com o tempo, porém, a política tornou-se palco, e o palco passou a impor-se à cidadania: as luzes cegam, o guião substitui o pensamento, o aplauso substitui a deliberação. Hoje, a maior parte do que chamamos política é sobretudo gestão do consentimento.”

[ Augustus Veritas ]

Prólogo – O Rebanho e a Sombra dos Pastores

A humanidade caminha, há milénios, entre a luz débil da consciência e a sombra espessa da manipulação. E, no entanto, não caminha como indivíduos livres – mas como rebanho. Um rebanho que aceita as cercas, os cajados e até os cães que o mordem. Um rebanho que se assusta facilmente, que corre em manada quando ouve o uivo do medo, que se detém resignado quando o pastor levanta a mão.

Este livro nasce dessa inquietação: a de perceber porque é que, depois de séculos de guerras, revoluções, ciência e conquistas, a humanidade continua tão dócil ao jugo dos poderosos. Nunca como hoje se estudou tanto, nunca como hoje se escreveu tanto, nunca como hoje se proclamou tanto sobre liberdade, igualdade e cidadania. E, no entanto, basta um sopro de medo – um vírus, uma guerra distante, uma crise económica fabricada – para que multidões enterrem a razão e aceitem o jugo sem protestar.

Talvez porque a maioria não vive como sujeito, mas como peça. Peça de uma engrenagem maior, invisível, que gira em nome do lucro, do poder ou da glória de alguns. A cada geração, ensina-se a obedecer mais do que a pensar; ensina-se a competir mais do que a cooperar; ensina-se a temer mais do que a amar. E, assim, a humanidade cresce mas não amadurece. Permanece criança assustada, joguete de pais severos e deuses impiedosos.

Não se trata de pessimismo, mas de lucidez. Os povos, que poderiam ser rios de criação e de mudança, são mantidos em charcos de ignorância, distraídos com migalhas de consumo e novelas políticas sem enredo. Transformaram o sublime dom da palavra em propaganda, e a educação em simples domesticação. E chamam a isso progresso.

Mas progresso para quem? Para os donos da cerca, para os que decidem o tamanho do redil, para os que escolhem qual será o próximo inimigo a temer. A grande maioria – essa, continua presa ao instinto do rebanho. O instinto de seguir, de não questionar, de entregar o destino nas mãos de alguém que prometa segurança, ainda que à custa da própria liberdade.

Este livro não pretende trazer respostas fáceis. Não há receitas para a emancipação da consciência. Mas pretende erguer espelhos. Espelhos onde cada leitor possa ver-se não como carneiro perdido, mas como ser humano em potência. Espelhos onde a mediocridade coletiva se revele tão grotesca que se torne insuportável. Espelhos onde os jovens, sobretudo, possam ver o que os velhos já esqueceram: que a liberdade nunca foi um presente, mas sempre uma conquista. E que cada conquista pode ser revertida se a vigilância se render ao cansaço.

“Escuta, Zé Ninguém” – gritou outrora Wilhelm Reich. E ainda hoje ecoa esse grito. Escuta, jovem. Escuta, mulher e homem do futuro. O que tens diante de ti não é apenas um mundo de tecnologia brilhante e promessas vazias de felicidade. É também um campo de pastores astutos, cães ferozes e muros erguidos para te manter dócil. Se não despertares, serás apenas mais um número, mais uma peça, mais uma sombra que passou.

Mas se despertares, se ousares pensar por ti, se tiveres coragem de unir-te aos outros na busca de um mundo mais digno – então talvez este rebanho comece, enfim, a desmanchar a cerca. Talvez os cães já não ladrem com tanto poder. Talvez os pastores descubram que perderam a sua força, porque o medo se transformou em consciência.

Este prólogo é semente. É provocação. É desafio. Se leres este livro apenas como entretenimento, ficarás onde estás: no meio do rebanho. Se o leres como apelo, talvez encontres em ti uma centelha que já lá estava, oculta mas viva. Essa centelha é o que resta da dignidade humana. E é dela que nascerá, um dia, uma humanidade adulta, livre e fraterna.

Capítulo 1 – O Instinto do Rebanho

Há em cada ser humano uma promessa de liberdade, mas também um peso de instintos herdados. Entre esses instintos, poucos são tão poderosos – e tão perigosos – como o de se comportar como rebanho.

O instinto do rebanho é, antes de mais, um reflexo de sobrevivência. Na savana primitiva, o indivíduo isolado era presa fácil. Junto da manada, tinha mais olhos para vigiar o horizonte, mais pernas para confundir o predador, mais corpos para sacrificar em caso de ataque. A evolução premiou o grupo, não o solitário. Assim, durante milénios, gravou-se no sangue humano a ideia de que segurança é sinónimo de conformidade. A obediência tornou-se virtude, a diferença tornou-se risco.

Mas o que outrora foi necessidade tornou-se hoje corrente elétrica que paralisa a mente. O mesmo instinto que salvava vidas no meio da selva, agora conduz multidões dóceis pelas mãos de pastores astutos. O medo de estar só, de pensar diferente, de ser excluído, transforma-se em submissão cega. E assim, gerações inteiras de cidadãos, com diplomas nas mãos, continuam a balir como carneiros, aceitando as cercas da rotina e as ordens do pastor.

Vejamos o espetáculo da política: Campanhas eleitorais, debates e slogans são o pasto verde onde o rebanho é alimentado. Cada grupo é conduzido a acreditar que o seu pastor é mais bondoso, mais visionário, mais protetor. E quando alguém ousa dizer que nenhum deles serve, o rebanho olha com desconfiança, como se esse dissidente fosse uma ovelha tresmalhada, perigosa, quase um inimigo interno. O que importa não é a verdade, mas o conforto de estar no meio, de não destoar, de repetir as mesmas palavras que todos repetem.

O instinto do rebanho revela-se também nas modas culturais e nas crenças religiosas. As massas adoram, sem pensar, o ídolo do momento, a figura messiânica, o mito conveniente. Cantores, pregadores, políticos ou milionários tecnológicos: todos sabem que não é preciso convencer o indivíduo – basta seduzir o grupo. Um slogan bem desenhado, uma mentira repetida mil vezes, uma imagem comovente nas redes sociais – e o rebanho corre atrás, como sempre correu atrás dos sinos dos templos ou do fumo dos sacrifícios.

O mais trágico é que o rebanho acredita que é livre. Confunde escolha entre marcas com autonomia, confunde voto de quatro em quatro anos com soberania, confunde informação em excesso com conhecimento verdadeiro. E, no entanto, continua incapaz de decidir por si, de questionar, de parar e dizer: “Não sigo, vou por outro caminho”. A pressão do grupo é demasiado forte, e o instinto herdado fala mais alto do que a razão conquistada.

Mas o instinto do rebanho não atua apenas na política ou na religião – está presente até nos gestos banais da vida. A criança que não quer ser a diferente da turma, o jovem que repete as modas para não ser excluído, o adulto que trabalha numa empresa que despreza, mas que não ousa abandonar porque “todos fazem assim”. Quantas vidas são sacrificadas, não a um predador externo, mas ao medo de sair da manada?

O instinto do rebanho é, portanto, a raiz mais profunda da escravidão moderna. Sem grilhões visíveis, sem chicotes, sem prisões, mantém os povos dóceis, obedientes e previsíveis. Os pastores de ontem usavam a religião e a espada; os de hoje usam a economia e a propaganda. Mas o mecanismo é o mesmo: aplacar o medo, oferecer segurança ilusória, e em troca colher obediência absoluta.

É preciso compreender este instinto para o começar a desmontar. O rebanho não deixará de o ser por decreto, nem por revoluções superficiais. É na consciência individual que o processo começa – quando cada pessoa percebe que não nasceu carneiro, mas humano. Quando entende que a segurança de seguir o grupo pode ser a maior das prisões. Quando reconhece que a dignidade não está em obedecer ao cajado, mas em caminhar com os próprios pés, mesmo que no início o caminho seja solitário.

Este primeiro capítulo abre a ferida: mostra que a docilidade da humanidade não é apenas fraqueza, é herança biológica e cultural. Mas, como toda a herança, pode ser desafiada. Os instintos não são destino inevitável – são apenas correntes invisíveis. E correntes podem ser quebradas.

Capítulo 2 – O Pastor: A Arte da Manipulação

Se o instinto do rebanho é o motor da submissão, o pastor é o maestro que dirige a sinfonia. Sem pastor, o rebanho vaguearia, disperso, talvez encontrasse liberdade na confusão. Mas o pastor dá-lhe direção, ainda que essa direção seja uma prisão disfarçada.

O pastor é, antes de mais, um leitor de almas. Não precisa de grande sabedoria filosófica, nem de ciência profunda. Basta-lhe conhecer os medos e desejos básicos do ser humano: fome, segurança, pertença, esperança. Com essas quatro cordas, toca melodias que fazem o rebanho marchar ao som do seu apito.

Ao longo da história, os pastores assumiram muitas formas. Foram reis que diziam governar por direito divino. Foram papas e bispos que se autoproclamavam intermediários entre Deus e os mortais. Foram generais que prometiam glória em troca de sangue. Foram banqueiros e patrões que falavam em progresso enquanto exploravam a miséria. E, mais recentemente, são políticos sorridentes e empresários visionários que sabem moldar o discurso à medida do rebanho, oferecendo sempre a ilusão de escolha, mas nunca a verdadeira liberdade.

A arte do pastor está na sua capacidade de fazer crer que a cerca é proteção. A ovelha olha para o arame farpado e pensa: “Aqui estou segura”. Não percebe que o mesmo arame que a protege do lobo é o que a impede de correr para novos pastos. O pastor sabe isto e mantém o equilíbrio perfeito: alimenta o medo do lobo, mas também alimenta o conforto da cerca. Sem o medo, o rebanho fugiria; sem o conforto, o rebanho desesperaria. É nesta dualidade que floresce o poder do pastor.

Não nos enganemos: o pastor não ama o rebanho. Ama apenas a lã que pode tosquiar, o leite que pode extrair, a carne que pode vender. Mas finge cuidado, finge compaixão, finge até sacrificar-se pelo bem das ovelhas. É a máscara que garante a obediência. E como o rebanho prefere a ilusão à verdade, aceita a máscara como se fosse a própria face.

Na política contemporânea, vemos esta arte elevada a uma ciência. Consultores de imagem moldam discursos, marqueteiros desenham slogans, psicólogos sociais testam reações em massa. Os pastores modernos já não precisam de cajados – têm sondagens, redes sociais e algoritmos. Com um simples clique, sabem o que o rebanho deseja ouvir e servem-lhe exatamente essa ração. Promessas, indignações fabricadas, inimigos de conveniência – tudo é cuidadosamente calculado para manter a manada calma, ou, quando necessário, excitada e agressiva.

O pastor também domina a arte da divisão. Sabe que um rebanho unido pode ser perigoso. Por isso, planta disputas internas: esquerda contra direita, pobres contra pobres, trabalhadores contra trabalhadores, identidades contra identidades. Assim, enquanto as ovelhas se bicam umas às outras, esquecem-se de olhar para cima e ver quem realmente as conduz. O truque é velho, mas nunca falha: divide para governar, distrai para manipular.

E quando uma ovelha ousa levantar a cabeça e questionar, o pastor não precisa de sujar as mãos. O próprio rebanho trata de isolá-la, expulsá-la, ridicularizá-la. A força da maioria é a arma mais eficaz do pastor. Ele não precisa de caçar os dissidentes; basta-lhe acenar o medo da diferença, e o rebanho faz o resto.

Há quem diga que o pastor é inevitável, que o ser humano precisa de líderes. Talvez seja verdade – mas há uma diferença abissal entre liderança e manipulação. Um verdadeiro líder inspira autonomia, fortalece consciências, prepara cada indivíduo para andar sozinho. Já o pastor manipulador alimenta a dependência, cultiva a infantilidade e perpetua a servidão. Um líder verdadeiro guia até que os outros possam guiar-se a si mesmos; um pastor manipulador guia para que nunca possam sair da sua sombra.

A humanidade tem confundido líderes com pastores desde sempre. Aclamamos ditadores como salvadores, idolatramos milionários como profetas, entregamos o destino coletivo nas mãos de homens que só sabem contar moedas ou votos. E assim, geração após geração, repetimos a farsa da dependência, acreditando que sem pastor não sobreviveríamos.

Mas talvez o maior segredo da arte do pastor seja este: ele só existe porque o rebanho o deseja. Não há pastor sem ovelhas que o sigam. Não há ditador sem povo ajoelhado. Não há manipulação sem a cumplicidade dos manipulados. A verdadeira pergunta não é “como o pastor manipula?”, mas “porque é que o rebanho consente?”.

Este capítulo é, portanto, um espelho duro: mostra que o pastor não é um tirano externo que se impõe pela força, mas a projeção de um instinto interno que deseja ser guiado. O pastor é, em última instância, a materialização do medo do rebanho de caminhar sozinho. E enquanto esse medo não for vencido, haverá sempre alguém pronto a erguer o cajado.

Capítulo 3 – Os Cães: A Violência e o Medo

Se o pastor é a mente que guia, os cães são os músculos que impõem. Sem cães, o cajado seria apenas um pedaço de madeira. Com cães, a ordem transforma-se em lei, e o medo torna-se ferramenta de obediência.

Na metáfora do rebanho, os cães correm, ladram, intimidam. Não são eles que decidem o destino das ovelhas, mas são eles que tornam esse destino inescapável. A sua função é clara: garantir que ninguém se afasta, que ninguém se rebela, que todos permanecem no trilho desenhado pelo pastor.

Historicamente, os cães assumiram muitas formas. Foram soldados que marcharam sobre multidões desarmadas. Foram polícias que dispersaram manifestações à bastonada. Foram espiões que vigiaram vizinhos, delatores que denunciavam em troca de migalhas de poder. Foram milícias armadas, tribunais de exceção, censores de palavras. Em todos os tempos e lugares, a sua essência foi a mesma: instaurar o medo para paralisar a vontade.

O medo é, talvez, a mais eficiente das prisões humanas. Não precisa de muros, não precisa de correntes. Basta sussurrar “pode ser pior”, e a maioria ajoelha-se. Os cães conhecem esta arte instintivamente: o latido vale mais que a mordida, a ameaça pesa mais que a violência real. O rebanho imagina horrores maiores do que os que realmente acontecem, e nessa imaginação se rende.

Na era moderna, os cães não se limitam à força física. Transformaram-se em tecnologias, em sistemas de vigilância que tudo veem, em algoritmos que tudo registam. Hoje, os cães têm olhos digitais e ouvidos artificiais. Rondam-nos não só nas ruas, mas também nas redes, nos telemóveis, nos dados que cedemos sem pensar. O medo já não é apenas de ser preso ou espancado – é o medo invisível de ser vigiado, controlado, cancelado. É a sensação de que cada palavra pode ser usada contra nós.

Mas os cães não vivem sem recompensa. Recebem o osso que o pastor lhes atira. Alguns recebem fardas, outros medalhas, outros apenas a sensação de poder sobre os mais fracos. E como qualquer cão fiel, não questionam o dono. O pastor alimenta, os cães obedecem. E o rebanho paga o preço.

A violência, no entanto, não é só física ou tecnológica. Há também a violência subtil das ideias repetidas até se tornarem dogma. Quando um jovem aprende desde cedo a não questionar, quando lhe dizem que “sempre foi assim” e “nada pode mudar”, aí também ladram os cães invisíveis. São eles que policiam o pensamento, que moldam a linguagem, que tornam inaceitável aquilo que poderia libertar. O medo de ser excluído, de ser ridicularizado, de ser condenado pela multidão – eis o novo latido que mantém o rebanho alinhado.

E há ainda um detalhe que não podemos ignorar: os cães não são estranhos ao rebanho. São também filhos do mesmo povo, nascidos da mesma terra. O soldado que dispara sobre manifestantes vem da mesma aldeia que eles. O polícia que protege o poder cresceu no mesmo bairro que os que ele prende. O censor que cala palavras também sonhou, um dia, com liberdade. Mas, seduzidos pelo osso do poder, trocam a fraternidade pela fidelidade ao pastor. É esta traição íntima que torna os cães tão eficazes: conhecem o rebanho porque são dele.

O ciclo completa-se assim: - O pastor manipula. - Os cães ameaçam. - O rebanho consente.

Três peças de uma engrenagem antiga, que mantém as sociedades presas ao medo.

Mas é preciso não esquecer uma verdade simples: os cães ladram porque as ovelhas obedecem. Quando o rebanho descobre que pode correr junto, os cães recuam. Nenhum cão, por mais feroz, pode enfrentar a massa desperta de um rebanho unido. É raro, é perigoso, mas é possível. Foi assim que nasceram revoluções, que muros caíram, que impérios desmoronaram.

E, no entanto, sempre depois da tempestade vem a calmaria… e novos pastores, novos cães, e o ciclo recomeça. A pergunta, que deixamos suspensa, é se algum dia o rebanho aprenderá a viver sem eles.

Capítulo 4 – O Medo da Liberdade

Se há algo mais paradoxal no coração humano do que a ânsia de liberdade, é o medo que essa mesma liberdade provoca. Os povos clamam por ela, escrevem-na em bandeiras, cantam-na em hinos, juram lutar até ao fim por conquistá-la. Mas quando finalmente se abre a porta da prisão, muitos hesitam em sair. A liberdade exige responsabilidade, e a responsabilidade é um fardo que nem todos desejam carregar.

É aqui que reside a chave de tantas derrotas históricas. O rebanho, habituado ao pastor e aos cães, olha para a planície aberta e sente vertigem. Sem fronteiras, sem alguém a dizer por onde andar, o que pensar, o que acreditar – muitos preferem regressar ao conforto da cerca. A liberdade, para quem nunca a viveu, pode parecer um abismo.

Erich Fromm descreveu este dilema com precisão: o homem, quando se vê livre das antigas amarras, busca instintivamente novas correntes para se sentir seguro. Troca um ditador por outro, um dogma por outro, um sistema de escravidão por outro mais disfarçado. A história confirma-o: quantas revoluções não começaram com gritos de liberdade e terminaram em novas tiranias?

A liberdade é exigente. Não basta proclamá-la – é preciso sustentá-la todos os dias com pensamento crítico, com solidariedade, com vigilância sobre quem governa e sobre nós próprios. E isso dá trabalho. É mais fácil delegar. É mais fácil escolher um salvador, um guia, um pastor que decida por nós, e regressar ao sono tranquilo do rebanho.

O medo da liberdade manifesta-se em pequenas coisas do quotidiano: - No estudante que evita fazer perguntas para não destoar. - No trabalhador que se cala perante a injustiça do patrão. - No cidadão que vê a corrupção mas diz “sempre foi assim”. - No jovem que tem ideias novas mas prefere escondê-las para não ser ridicularizado.

Cada silêncio é uma cerca invisível, cada cedência um tijolo no muro que nos aprisiona de novo.

E os manipuladores sabem disso. Por isso vendem liberdade em embalagens seguras: “escolha entre A ou B”, “vote neste ou naquele”, “consuma isto ou aquilo”. Transformam a liberdade numa ilusão de escolha, controlada, limitada, pasteurizada. O rebanho sente-se livre porque pode escolher entre duas marcas de ração, mas nunca percebe que a cerca continua no mesmo lugar.

O mais inquietante é que, quando alguém ousa viver realmente livre, o rebanho reage com hostilidade. O inconformista é chamado de louco, perigoso, inimigo da ordem. A liberdade de um só é vista como ameaça à tranquilidade de todos. Assim, o rebanho protege as suas próprias correntes, atacando quem tenta quebrá-las. É o medo coletivo a falar mais alto que o sonho individual.

O medo da liberdade não é apenas psicológico; é também político. Os sistemas de poder aprenderam a usá-lo como arma. Prometem segurança em troca de obediência. Oferecem estabilidade em troca de conformismo. E como o rebanho teme o caos, aceita. Troca-se futuro por presente, dignidade por conforto, esperança por rotina.

Mas há sempre quem resista. Pequenos grupos, indivíduos dispersos, espíritos livres que ousam pensar, ousam agir, ousam correr para além da cerca. São eles que mantêm acesa a chama, que lembram ao rebanho que a liberdade não é um dom, mas uma luta. São poucos, são frágeis, muitas vezes esmagados – mas basta um sopro deles para que, de tempos a tempos, a história se incendeie em revoluções.

E talvez a maior lição seja esta: a liberdade nunca está conquistada. É como um rio que precisa de corrente contínua. Se estagnar, apodrece. Se secar, morre. O medo é sempre a represa que ameaça travá-la.

O desafio do futuro será, portanto, ensinar as gerações não só a sonhar com a liberdade, mas a não a temer. Não basta dar escolas; é preciso ensinar a pensar, a errar, a escolher – e a assumir as consequências dessas escolhas. A liberdade não é confortável, mas é a única condição digna de um ser humano que queira, de facto, ser humano.

Capítulo 5 – As Cercas Invisíveis: Ideologias e Fronteiras

O rebanho não é contido apenas por muros físicos ou por cães a ladrar. Há barreiras invisíveis, erguidas no pensamento e no coração, que se revelam ainda mais poderosas do que grades de ferro. São as ideologias, as crenças absolutas, as fronteiras imaginárias que os homens inventaram para se dividirem uns dos outros.

Desde cedo, o ser humano descobriu a facilidade de manipular com símbolos. Um pedaço de pano colorido tornou-se bandeira. Um som gutural transformou-se em hino. Uma linha traçada num mapa converteu-se em nação. E de repente, milhões de pessoas estavam dispostas a matar e morrer por abstrações que nunca tinham visto com os olhos, mas que carregavam dentro da cabeça como se fossem a própria vida.

As ideologias são as cercas invisíveis que limitam o pasto do rebanho. Prometem sentido, prometem pertença, prometem ordem. Mas no fundo apenas confinam. Quem pensa fora do quadrado é considerado herege, traidor, inimigo da pátria. O medo da exclusão social mantém cada indivíduo preso ao seu lado da cerca, mesmo quando a verdade se encontra do outro lado.

Basta olhar para a história recente. Milhões marcharam atrás do nazismo, acreditando que serviam a grandeza da pátria. Outros tantos ajoelharam-se perante o estalinismo, certos de que construíam o paraíso da igualdade. Em ambos os casos, a cerca invisível era tão forte que transformou homens comuns em cúmplices de horrores inimagináveis. E ainda hoje, ideologias de várias cores continuam a dividir povos que poderiam viver em harmonia.

As fronteiras não são menos absurdas. Rios, montanhas, desertos – todos atravessados por linhas traçadas por governantes em mesas de negociações. Linhas que transformaram vizinhos em estrangeiros, irmãos em inimigos, povos inteiros em exércitos de defesa daquilo que, na realidade, nunca lhes pertenceu. A Terra não tem cercas – o homem é que as inventou.

O mais cruel é que estas cercas invisíveis parecem naturais. A criança cresce a acreditar que o hino da sua pátria é mais nobre do que o do vizinho. O estudante aprende que a sua ideologia é a mais justa. O trabalhador repete os chavões que ouviu dos líderes. Poucos percebem que tudo isto é construção, ilusão – ferramentas de manipulação usadas pelos pastores para manter o rebanho dócil e dividido.

Mas há sempre fissuras nas cercas. A literatura, a filosofia, a ciência – todas elas já abriram buracos por onde alguns ousaram escapar. Um livro pode rasgar uma fronteira. Um pensamento crítico pode derrubar um dogma. Um abraço sincero entre dois seres humanos pode desarmar séculos de ódio entre povos. É nesses momentos que percebemos que as cercas são, afinal, frágeis. O que as sustenta é apenas a crença coletiva, o medo de sair do rebanho, o hábito de obedecer.

Se a humanidade quiser avançar, terá de aprender a desmontar as suas próprias cercas invisíveis. Não será fácil – cada geração herda o peso das crenças dos pais. Mas é urgente ensinar que ideologias são ferramentas, não verdades eternas. Que fronteiras são convenções, não destinos. E que a verdadeira liberdade começa quando percebemos que a Terra é uma só, e que todo ser humano é nosso irmão antes de ser estrangeiro.

As cercas invisíveis caem quando aprendemos a ver o outro não como ameaça, mas como reflexo da mesma humanidade que pulsa em nós. E talvez o dia em que essas cercas ruírem seja o primeiro em que o rebanho deixará de ser rebanho – e finalmente se tornará humanidade.

Capítulo 6 – O Pastor Invisível: O Poder Económico

Há um pastor ainda mais subtil que os políticos e os dogmas. Ele não veste farda nem sobe a púlpitos inflamados. Não precisa de discursos nem de bandeiras. O seu poder é silencioso, quase invisível – mas mais avassalador do que qualquer exército. É o poder económico.

Desde os primórdios, quando o primeiro homem guardou mais grãos do que precisava, nasceu a semente da desigualdade. Quem tinha acumulava; quem não tinha servia. E pouco a pouco o rebanho deixou de se organizar apenas pelo medo dos cães ou pela fé nos deuses – passou a curvar-se diante do ouro, do mercado, da promessa do lucro.

O poder económico é um pastor sem rosto, mas com mil braços. Controla os governos, porque nenhum governante sobrevive sem o favor dos grandes capitalistas. Controla os media, porque as notícias pertencem a conglomerados que vivem de publicidade e interesses. Controla até os sonhos, porque desde crianças somos ensinados a aspirar a bens que não precisamos, a competir por empregos que nos esgotam, a medir a nossa vida pelo que conseguimos comprar.

O trabalhador acredita que labuta para alimentar a sua família. Mas na verdade, a maior parte do seu esforço vai para alimentar o sistema. Metade em impostos que se perdem na corrupção, outra metade em lucros que enriquecem acionistas invisíveis. No fim, sobra pouco mais do que o suficiente para continuar a sobreviver – e continuar a trabalhar. Eis o truque perfeito: manter o rebanho ocupado a correr atrás de cenouras penduradas à frente do nariz.

Os jovens, que estudam durante dezasseis anos ou mais, são lançados ao mercado como peças de engrenagem. Chegam com ideais, mas rapidamente descobrem que terão de vender o seu tempo e a sua energia a quem detém o capital. A cada geração, repete-se a mesma armadilha: prometer que o esforço de hoje trará prosperidade amanhã. Mas o amanhã nunca chega.

O poder económico não precisa de gritar ordens. Basta manipular preços, controlar mercados, financiar campanhas eleitorais. Um clique num banco internacional pode arruinar um país inteiro. Um investidor estrangeiro pode ditar a política de saúde ou de educação de uma nação. E o mais triste é que quase ninguém percebe – porque o pastor invisível sabe esconder-se atrás de números, relatórios e jargões técnicos que a maioria não entende.

Eis a verdade incômoda: já não vivemos em democracias, mas em plutocracias disfarçadas. Não são os cidadãos que escolhem os destinos coletivos, mas os donos do dinheiro. As eleições são apenas teatro para legitimar o poder que já foi comprado nos bastidores. E enquanto o rebanho discute ideologias, religiões e fronteiras, o verdadeiro pastor recolhe tranquilamente a lã, o leite e a carne de todos.

Mas até este poder pode ser desafiado. Se o rebanho aprendesse a cooperar em vez de competir, a partilhar em vez de acumular, a consumir apenas o necessário – o pastor invisível perderia a sua força. Pois o capital só é poderoso porque o rebanho acredita que precisa dele. O dia em que a humanidade compreender que a riqueza real é o conhecimento, a solidariedade e a liberdade, será o dia em que o pastor invisível perderá o cajado.

Até lá, continuaremos a viver neste grande mercado de ilusões, onde até a esperança se vende em suaves prestações mensais.

Capítulo 7 – Os Cães Modernos: Tecnologia e Vigilância

Durante séculos, os cães do rebanho eram soldados, inquisidores, polícias de uniforme. Mostravam os dentes, batiam com o cacete, punham medo à vista desarmada. Hoje, os cães mudaram de forma. Tornaram-se digitais, silenciosos, quase invisíveis. O seu latido não é mais um grito – é uma notificação no telemóvel. A sua dentada não é uma mordida – é a perda da privacidade, a manipulação da mente, o controlo do comportamento.

Chamam-lhe tecnologia. E de facto, a tecnologia é um milagre humano. Mas nas mãos erradas, transforma-se no mais obediente cão do pastor.

Cada clique que fazemos, cada passo que damos com um smartphone no bolso, cada compra, cada palavra escrita, cada imagem publicada – tudo é registado, analisado e vendido. Vivemos numa imensa cerca digital, onde cada ovelha é seguida por olhos eletrónicos. As redes sociais são o pasto perfeito: o rebanho entretém-se, discute, briga, exibe-se, sem perceber que o verdadeiro espetáculo acontece nos bastidores – a recolha massiva de dados para alimentar algoritmos que conhecem melhor os nossos desejos do que nós próprios.

Os cães modernos não precisam de ladrar. Eles sussurram. Aparecem em forma de anúncios personalizados, sugestões inocentes, vídeos que capturam horas da nossa atenção. E quando o rebanho está cansado, oferecem-lhe distrações infinitas, para que nunca tenha tempo de pensar na cerca em que vive.

O pastor invisível – o poder económico – agradece. Pois estes cães digitais mantêm a manada ordeira, consumista e vigiada. Não é por acaso que os gigantes da tecnologia são hoje mais ricos do que muitos países. Não é por acaso que governos recorrem a essas mesmas ferramentas para vigiar opositores, manipular eleições, ou mesmo reescrever a história em tempo real.

Chamam-lhe progresso, mas é vigilância. Chamam-lhe liberdade digital, mas é prisão com paredes invisíveis. A ovelha acredita que é livre porque pode postar o que quiser. Mas não percebe que cada post é uma peça no puzzle da sua própria prisão.

O que antes se fazia com cassetetes e quartéis de polícia, hoje faz-se com algoritmos e satélites. Os cães de hoje não correm atrás de nós – antecipam-nos, previnem cada fuga, conhecem cada fraqueza. E assim, a cerca já não precisa de arame: vive dentro da nossa cabeça.

Mas nem tudo está perdido. Se os cães modernos podem ser usados para vigiar, também podem ser usados para libertar. A mesma tecnologia que manipula também pode educar, despertar, unir consciências dispersas. A mesma rede que espalha mentiras pode partilhar verdades. A diferença está em quem segura a trela.

O futuro da humanidade dependerá de uma escolha simples: continuaremos a viver como um rebanho docilizado por cães digitais, ou teremos a coragem de os transformar em companheiros de liberdade?

Capítulo 8 – O Cão de Guarda: A Polícia e a Ordem Imposta

O rebanho, por si só, raramente se revolta. A rotina, o cansaço e o medo são suficientes para mantê-lo obediente. Mas há momentos em que as ovelhas começam a murmurar, quando percebem que a cerca é demasiado estreita, que a lã lhes é arrancada até ao osso, que a fome já não se aguenta.

É então que entra em cena o cão de guarda.

Ele não é o pastor. Não decide os preços, não estabelece fronteiras, não define leis. Mas é o seu braço armaduo, a sua sombra disciplinadora. Late, persegue, morde. Não precisa de pensar, apenas de obedecer.

O cão de guarda veste uniforme. Carrega bastão, arma e escudo. Apresenta-se como defensor da ordem, como guardião da paz. Mas a ordem que defende não é a do rebanho – é a do pastor. A paz que guarda não é a dos oprimidos – é a dos opressores.

Dizem-nos que a polícia protege os cidadãos. Mas, quando os cidadãos protestam contra a injustiça, quem os agride? Dizem-nos que a polícia está ao serviço da lei. Mas, quando a lei é injusta, quem garante que ela se mantém? O cão de guarda não distingue justiça de injustiça – só distingue ordens de desobediência.

Quando uma ovelha sai da linha, o cão corre atrás. Quando um grupo tenta saltar a cerca, o cão ataca em matilha. E, assim, a repressão transforma-se em espetáculo público: um aviso para que as restantes ovelhas nem sequer pensem em resistir.

Mas há algo de trágico no cão de guarda. Também ele é uma ovelha, disfarçada de lobo. Também ele vive do mesmo salário miserável, também veste a mesma pele de medo, também é tosquiado pelo mesmo pastor invisível. A diferença é que acredita ser mais do que o rebanho. Acredita ser parte do poder, quando não passa de mais uma engrenagem descartável.

A história está cheia de cães de guarda que um dia foram abandonados pelos próprios pastores que serviam. Quando já não são úteis, deixam de ser alimentados. O pastor não tem amigos, só servos temporários.

A pergunta que o rebanho deveria fazer não é apenas: como resistir ao cão de guarda? Mas sim: como abrir-lhe os olhos? Porque, no dia em que o cão perceber que também é oprimido, a matilha pode virar-se contra o pastor. E nesse dia, o medo deixará de estar nas ovelhas para estar, finalmente, onde sempre deveria ter estado: no coração do opressor.

Capítulo 9 – O Curral Digital: As Redes e a Vigilância

No passado, o rebanho era controlado por muros de pedra, guardas nas fronteiras e cães a rondar os campos. Hoje, o curral é invisível. Não há muros, mas algoritmos. Não há correntes, mas feeds infinitos. Não há pastores visíveis, mas corporações globais que moldam, silenciosamente, cada pensamento.

O rebanho acredita estar mais livre do que nunca. Publica, partilha, comenta, protesta. Mas tudo é monitorizado, classificado, arquivado. Cada clique revela desejos, medos, crenças. Cada palavra escrita torna-se matéria-prima para a máquina. E, sem se dar conta, o rebanho constrói com as próprias mãos a prisão que o encerra.

Chamam-lhe “redes sociais”, mas são, na verdade, redes de captura. Servem para entreter ovelhas cansadas, anestesiar consciências e transformar cada impulso em mercadoria. O rebanho, distraído com curtidas e seguidores, esquece-se do essencial: que a sua vida inteira foi convertida em dados. E esses dados são o ouro do novo império.

O pastor já não precisa de dar ordens diretas. O algoritmo sugere. Sugere o que comprar, o que odiar, o que amar, em quem votar. E o rebanho, convencido de que escolhe livremente, segue a rota já traçada. Nunca os grilhões foram tão leves, nunca a prisão foi tão invisível – e nunca o controlo foi tão absoluto.

Há ainda os cães digitais. Não trazem bastão nem pistola, mas código e vigilância. São programas que espiam, censuram, silenciam. São moderadores que decidem quem pode falar e quem deve calar. São filtros que escolhem o que o rebanho vê e o que é escondido para sempre.

O mais perverso de tudo é que as ovelhas amam o curral digital. Amam os seus ecrãs brilhantes, os jogos, as notificações. Amam a sensação de pertença a uma comunidade que, na verdade, é um mercado de consumidores e uma arena de gladiadores virtuais. O rebanho já não precisa ser forçado – corre alegre para a cerca.

Mas, como em todos os currais, há falhas nas tábuas. Há sempre quem perceba a armadilha, quem desligue o ecrã, quem recuse ser reduzido a dado estatístico. São poucos, quase sempre ridicularizados, tachados de loucos ou conspiradores. Mas é deles que pode nascer a semente da verdadeira liberdade: a consciência de que a tecnologia deve servir o ser humano, e não o contrário.

O curral digital não é inevitável. É uma construção – e tudo o que é construído pode ser derrubado. O desafio é simples e imenso: o rebanho precisa aprender a usar as ferramentas sem se deixar usar por elas.

Capítulo 10 – O Consumo e a Lã: Como o Rebanho é Tosquiado

O rebanho não vive apenas para pastar. Ele é criado para fornecer lã. E a tosquia, embora suave no gesto, é sempre violenta na consequência. A cada estação, os pastores estendem as mãos e retiram o que o rebanho produziu. Assim tem sido ao longo da história: o dízimo, o imposto, a taxa, a contribuição obrigatória. O nome muda, a essência permanece.

O rebanho é tosquiado não apenas para sustentar a sobrevivência do pastor, mas sobretudo para alimentar a sua ganância. Não basta lã para vestir – é preciso lã para acumular, para exibir, para ostentar. E o rebanho, dócil, acredita que a tosquia é inevitável. Alguns até agradecem: “pelo menos servimos para algo”, dizem, sem perceber que poderiam viver de outra forma, livres da eterna tesoura.

Hoje, a tosquia é mais sofisticada. Não se limita ao imposto. É feita no supermercado, no crédito fácil, na publicidade que manipula desejos. O rebanho já não entrega apenas lã; entrega carne, entrega tempo, entrega até a alma. Trabalha horas infindas para comprar aquilo que lhe disseram ser essencial. E quando finalmente o adquire, já existe uma nova moda, uma nova necessidade inventada, um novo corte de tesoura preparado.

O mais engenhoso do sistema é que o rebanho tosquiado raramente se revolta. As ovelhas exibem orgulhosas as suas novas cicatrizes como se fossem medalhas de mérito. A tosquia foi transformada em espetáculo: — “Olha a minha nova lã tingida, olha o meu telemóvel, o meu carro, a minha viagem.” Tudo comprado com suor, tudo pago a crédito, tudo passageiro. E, no entanto, o rebanho gaba-se das correntes que o prendem.

A tosquia também é ideológica. Não basta retirar bens; é preciso retirar pensamento. O rebanho é convencido de que não existe alternativa. “Assim é o mundo”, repetem-lhe. Quem ousa propor outra forma de vida é visto como tolo, sonhador ou perigoso. A maior tosquia é esta: quando já nem é preciso cortar, porque as próprias ovelhas entregam a sua lã voluntariamente, acreditando que sem o pastor não sobreviveriam.

Há, contudo, momentos de rebeldia. De tempos em tempos, uma ovelha olha em volta e percebe que o campo é vasto, que as cercas não são invencíveis. Percebe que a lã que lhe tiram poderia aquecer a sua própria família, não apenas o luxo dos palácios. Essas ovelhas tornam-se inspiração para as outras, ainda que quase sempre perseguidas pelos cães do sistema. Mas a história mostra: quando muitas percebem ao mesmo tempo a fraude, o rebanho transforma-se em multidão consciente – e as tesouras tremem.

A tosquia não é destino. É uma escolha de aceitação. Enquanto o rebanho acreditar que nasceu apenas para dar lã, será tosquiado sem cessar. Mas se, um dia, compreender que nasceu para ser livre, que pode proteger-se, organizar-se e cuidar de si sem precisar dos pastores, a tesoura enferrujará e cairá das mãos dos que hoje reinam.

Capítulo 11 – As Religiões e os Cultos: Os Deuses dos Pastores

Desde os primeiros fogos acesos nas cavernas, os pastores perceberam algo: o rebanho teme o desconhecido. Teme o trovão, a morte, a doença, o eclipse. E o medo, esse instinto primitivo, é a chave mais eficaz para controlar as ovelhas.

Assim nasceram os deuses dos pastores. Primeiro eram espíritos da floresta, do rio, do vento. Depois tornaram-se deuses com nomes, hierarquias e templos. Mais tarde, evoluíram em religiões organizadas, com dogmas, rituais e sacerdotes. Sempre com a mesma função: manter o rebanho unido e obediente.

A religião foi a cerca invisível mais eficiente já construída. Enquanto as lanças e as correntes precisavam de força física, a fé moldava a mente. A ovelha já não precisava de guardas à volta: bastava acreditar que um olho invisível a vigiava, sempre. E, por medo desse olho eterno, ajoelhava-se docilmente diante dos altares.

O pastor não agia sozinho: delegava a tarefa nos sacerdotes. Eles eram os intérpretes do divino, os únicos capazes de falar com os céus. E, claro, sempre em troca de algo: lã, sacrifícios, ouro, obediência. O rebanho oferecia o melhor do seu trabalho para “agradar aos deuses”, sem perceber que, na verdade, alimentava apenas os estômagos e os cofres de homens comuns vestidos de sagrado.

A grande astúcia do sistema religioso foi transformar a exploração em virtude. A pobreza virou santidade. O sofrimento tornou-se caminho para a salvação. A obediência cega passou a ser prova de fé. E o rebanho, grato, ajoelhava-se perante os seus próprios grilhões.

As guerras santas foram talvez o exemplo mais brutal desta manipulação. Pastores diferentes, com deuses diferentes, empurraram os seus rebanhos uns contra os outros. Milhões de ovelhas morreram convencidas de que estavam a defender o céu, quando na realidade apenas defendiam os interesses terrenos dos seus donos. O sangue derramado alimentou tanto a terra quanto o poder dos que ficaram.

Hoje, as religiões já não dominam com a mesma força, mas os seus métodos foram herdados. A idolatria deslocou-se para outros altares: o consumo, a pátria, os líderes carismáticos. O culto da cruz deu lugar ao culto do mercado. O sermão dominical foi substituído pelo noticiário televisivo. Mas o mecanismo é o mesmo: criar fé, impor dogma, exigir obediência.

Ainda assim, há uma verdade escondida no meio de toda esta construção: o rebanho precisa de acreditar em algo maior do que si. Essa sede espiritual não é uma invenção dos pastores; é parte do próprio ser humano. O problema não está em acreditar, mas em entregar a fé como moeda de troca ao poder. Enquanto a espiritualidade for usada como tesoura, o rebanho continuará a ajoelhar-se sem perceber que poderia estar de pé.

O dia em que as ovelhas descobrirem que os deuses não precisam de pastores para serem sentidos, que a fé não exige templos dourados nem dogmas, mas apenas consciência e liberdade, nesse dia as cercas ruirão. E talvez, finalmente, a espiritualidade deixe de ser um instrumento de manipulação e se torne, pela primeira vez, fonte de libertação.

Capítulo 12 – A Política: O Pastoreio Moderno

Se a religião foi a cerca invisível do passado, a política é o cercado moderno onde o rebanho se mantém. Mudam-se os altares, mas não se altera a lógica do domínio. Hoje já não é o sacerdote quem ergue a batina, mas o político que levanta a bandeira. Ambos prometem salvação: um no céu, outro na terra.

A política nasceu como promessa de organização da vida coletiva. Na teoria, era o espaço da razão, do debate, da construção do bem comum. Na prática, transformou-se no maior palco de manipulação já concebido. Os pastores de hoje não falam em nome de deuses — falam em nome do povo. Mas, tal como os antigos sacerdotes, não servem o rebanho; servem-se dele.

As eleições, apresentadas como festas da liberdade, tornaram-se o grande ritual do pastoreio moderno. De tempos a tempos, o rebanho é conduzido à urna, convencido de que decide o seu destino. Ali, escolhe entre cães diferentes, mas todos treinados pelo mesmo pastor. O voto é a esmola da democracia, moeda simbólica que dá ao rebanho a ilusão de poder, enquanto o verdadeiro poder permanece nas mãos de quem controla as cercas.

A grandeza da manipulação política está no seu duplo movimento: divide e governa. As ovelhas são estimuladas a lutar entre si: esquerda contra direita, pobres contra pobres, identidades contra identidades. Cada facção acredita defender uma causa nobre, mas, no fim, todas servem o mesmo sistema de exploração. Enquanto se enfrentam, esquecem-se de olhar para cima — para o pastor que segura a vara.

Os partidos são hoje máquinas de marketing travestidas de instituições democráticas. A verdade não interessa; interessa a narrativa. E quem melhor dominar a narrativa, controla o rebanho.

Entretanto, a política moderna aperfeiçoou o uso do medo — tal como os sacerdotes usavam o inferno. Agora, o inferno chama-se crise económica, terrorismo, pandemia, imigração, guerra. O rebanho, em pânico, corre sempre para os braços do pastor, aceitando cercas mais altas, cães mais ferozes e menos liberdade em troca da promessa de segurança.

A política só será libertação quando deixar de ser espetáculo e se tornar participação. Enquanto o povo continuar a delegar o seu poder a intermediários, continuará a ser rebanho. O dia em que o rebanho recusar o teatro e decidir governar-se a si próprio, sem pastores nem cães, nesse dia nascerá uma política verdadeira.

Capítulo 13 – A Economia: A Tosquia Eterna

A economia é o campo onde o cajado se torna tesoura. Aqui mede-se a obediência em horas de trabalho, e a docilidade em linhas de crédito. Falamos de números — PIB, défice, inflação —, mas o que está em jogo é **vida humana**: tempo, saúde, dignidade.

1) Mecanismos de concentração A regra silenciosa do último século foi simples: **quem tem, ganha mais**. Quando o retorno do capital supera o crescimento da economia, a riqueza concentra-se. Some-se a isto: paraísos fiscais, planeamento agressivo, isenções seletivas. Resultado: poucos acumulam montanhas, muitos disputam migalhas. O rebanho trabalha; a montanha cresce.

2) Trabalho precarizado, vida exaurida A uberização promete liberdade, entrega precariedade. Contratos intermitentes, horários elásticos, metas incessantes. A produtividade sobe, mas o salário real estagna. O custo é pago em ansiedade, burnout, solidão. A tesoura já não corta só a lã — corta anos de vida.

3) Dinheiro, dívida e bancos Crédito cria moeda; juros criam dependência. Famílias endividadas aceitam piores empregos; Estados endividados aceitam piores políticas. Nas crises, socializam-se perdas (resgates, austeridade); nos tempos de bonança, privatizam-se lucros (dividendos, recompras). O rebanho paga duas vezes.

4) Crises que tosquiam 1929, 2008, choques pandémicos ou energéticos: a narrativa é sempre a mesma — “vivemos acima das possibilidades”. Pouco se diz sobre **fraudes sistémicas**, **alavancagem excessiva**, **captura regulatória**. A solução proposta? Cortes em serviços públicos, compressão salarial, mais dívida. A tosquia aprofunda-se, o ciclo recomeça.

5) Consumo, obsolescência e publicidade A máquina precisa que compremos sem cessar. Planeia-se a **obsolescência**, fabrica-se necessidade, financia-se desejo. O estatuto substitui o sentido. Trabalha-se para comprar o que logo se torna lixo. E, quando falta ar, oferecem-nos **crédito** — respirar hoje, sufocar amanhã.

6) Planeta finito, economia infinita? Um rebanho num pasto finito não pode correr atrás de crescimento infinito. As externalidades escondem o custo ambiental do lucro privado: rios mortos, ar doente, solos cansados. Privatiza-se o ganho, socializa-se o prejuízo. A conta chega na forma de clima extremo e colheitas perdidas.

Linhas de fuga e sementes de futuro - Justiça fiscal: tributação efetiva de riqueza, heranças elevadas, combate real a paraísos fiscais, imposto sobre transações financeiras. - Direitos do trabalho*. negociação coletiva forte, semana de 4 dias, limites ao trabalho em plataformas. - Economia do cuidado: saúde mental, educação, cultura e ciência como investimento social e não custo. - Propriedade e bens comuns: energia, água e dados como infraestruturas com governança pública/comum; cooperativas e mutualismo. - Moedas locais e finanças éticas: crédito orientado para a transição ecológica e para pequenas economias reais. - Renda Básica (ou pisos de proteção) vinculada a políticas ativas de participação e formação. - Política industrial verde: reindustrialização limpa, soberania energética, agricultura regenerativa. - Novas métricas: substituir o fetiche do PIB por indicadores de bem estar, saúde, tempo livre, qualidade ecológica.

8) Reconciliação entre economia e vida A economia deveria responder a uma pergunta simples: o que precisamos para viver bem, juntos, sem destruir a casa comum? Se a resposta não cabe nos balanços, mudemos os balanços. O crescimento que interessa chama-se dignidade. O lucro que importa chama-se tempo. A produtividade que liberta chama-se comunidade.

Quando o rebanho compreender isto, a tesoura perderá o fio. E a economia deixará de ser a arte de tosquiar para tornar-se a ciência de cuidar.

— Exemplos históricos —

Exemplos económicos – Portugal:

- Troika (2011–2014): austeridade, compressão salarial, subida do desemprego e emigração; debate sobre soberania orçamental e impactos sociais.

- Colapso bancário (ex.: resoluções e nacionalizações): custos significativos para o erário público e discussão sobre supervisão e regulação.

- Parcerias públicoprivadas e endividamento: compromissos de longo prazo com impacto orçamental continuado.

- Turismo e habitação: pressões de curto prazo sobre rendas e acesso à casa em centros urbanos; tensão entre economia local e direito à cidade.

Exemplos económicos – Mundo:

- Grande Depressão (1929) e New Deal: políticas anticíclicas e regulação financeira como resposta à crise sistémica.

- Viragem neoliberal (anos 70/80): desregulação, financeirização e crescimento das desigualdades.

- Crise asiática (1997) e crise financeira global (2008): contágio financeiro, resgates bancários e socialização de perdas.

- Rana Plaza (2013): tragédia industrial que expôs cadeias globais de produção e custos humanos da 'fast fashion'.

- Planos de estímulo e compras de ativos por bancos centrais (QE): estabilização financeira vs. efeitos colaterais na concentração de riqueza.

- Transição energética: reindustrialização verde, soberania tecnológica e riscos de novas dependências em cadeias críticas.

— Exemplos portugueses – economia após 25 de Abril —

Exemplos económicos portugueses – após 1974:

- Industrialização/desindustrialização: ciclos de reestruturação setorial; deslocação de emprego para serviços e turismo.

- Adesão à CEE/UE (1986): fundos de coesão, modernização de infraestruturas e internacionalização de empresas; novas dependências de cadeias externas.

- Euro e crédito: expansão do crédito privado, bolhas imobiliárias e endividamento; vulnerabilidade a choques externos.

- Crise soberana e programa de ajustamento (2011–2014): austeridade, emigração, desemprego elevado; posterior recuperação exportadora e consolidação orçamental.

- Sistema bancário: resoluções, recapitalizações e custos orçamentais; reforço da supervisão e da regulação prudencial.

- Mercado de trabalho: dualidade entre contratos protegidos e precários; crescimento de trabalho em plataformas e salários estagnados em vários setores.

- Habitação: pressão de procura em centros urbanos (turismo, investimento externo, arrendamento de curta duração); respostas públicas em habitação acessível ainda em construção.

- Coesão territorial: litoralização do investimento e despovoamento do interior; necessidade de políticas de mobilidade, conectividade e serviços públicos de proximidade.

- Transição energética: aposta em renováveis e interligações; oportunidade de reindustrialização verde e criação de cadeias de valor locais.

Capítulo 14 – Os Médias: A Voz do Pastor

Se os cães são os guardiões do rebanho e a economia é a tesoura que tosquia, os médias são a voz do pastor. Não precisam de chicote nem de mordida — bastam palavras, imagens e sons. Uma frase repetida mil vezes torna-se verdade. Uma mentira transmitida com solenidade converte-se em doutrina. Um silêncio mantido no momento certo vale mais do que qualquer discurso.

Os médias são a bíblia do rebanho moderno. Na televisão, no rádio, nos jornais e agora nos ecrãs luminosos dos bolsos, o rebanho encontra aquilo que deve pensar, sentir, temer e desejar. A opinião pública não nasce da livre análise, mas da digestão passiva de slogans e manchetes.

A força dos médias reside na sua invisibilidade: o rebanho acredita que está a escolher livremente as suas ideias, quando na verdade recebe pacotes pré-fabricados. É através deles que se constroem os inimigos, que se erguem ídolos e se destroem reputações. Com um único editorial, pode-se transformar um ditador em herói ou um pensador em criminoso.

A máquina mediática é alimentada pela distração. Reality shows, novelas intermináveis, competições desportivas que ocupam dias inteiros — tudo serve para manter o rebanho ocupado. Enquanto as ovelhas discutem quem venceu o concurso ou o campeonato, a tosquia continua, e o mundo arde em silêncio.

Mas os médias têm um ponto vulnerável: precisam da credulidade do rebanho para existir. Se um dia as ovelhas desligarem os ecrãs, se um dia aprenderem a pensar antes de repetir, toda a construção se desmorona.

Capítulo 15 – A Escola: A Fábrica de Ovelhas Domesticadas

Se a religião é a cerca invisível, a escola moderna tornou-se na fábrica onde ovelhas selvagens são transformadas em carneiros dóceis. Chamam-lhe educação, mas muitas vezes não passa de adestramento.

Desde cedo, a criança aprende a sentar-se em filas, a levantar o braço para falar, a obedecer ao toque da campainha. É um treino subtil para a obediência: não se trata de ensinar a pensar, mas de ensinar a esperar ordens.

Os currículos moldam as mentes para absorver informação em vez de questionarem. O que importa não é a curiosidade, mas a nota. O que importa não é a dúvida, mas a resposta certa já dada. Assim, matam-se as perguntas antes de nascerem.

E quando surge uma criança inquieta, que sonha diferente, que pensa fora da cerca, logo é rotulada de problemática. A máquina não tolera desvios. A escola não é feita para criar rebeldes, mas para fabricar conformistas.

Na verdade, a escola moderna serve dois mestres: o Estado e a economia. Ao Estado interessa formar cidadãos obedientes. À economia interessa formar trabalhadores treinados. Não é por acaso que muitos jovens saem após 12 ou 16 anos sem nunca terem aprendido a pensar por si.

Ainda assim, há sempre brechas. Um professor livre, um livro proibido, uma ideia fora da caixa. São sementes de rebelião que, às vezes, sobrevivem ao cimento do conformismo.

Capítulo 16 – A Política: O Teatro dos Pastores

Se a religião é a cerca invisível e a escola a fábrica de ovelhas domesticadas, a política é o grande teatro dos pastores. É lá que se representam as farsas destinadas a convencer o rebanho de que está no comando, quando, na verdade, é apenas figurante.

Os políticos aparecem de fato engomado, palavras afiadas e promessas cintilantes. São atores num palco chamado parlamento, mas os guiões já foram escritos nos bastidores. O povo, sentado na plateia, aplaude ou vaiava, mas raramente percebe que não é ele quem decide o enredo.

E assim se sucedem eleições após eleições, como peças de teatro repetidas: mudam-se os atores, mantém-se o cenário, repete-se a intriga.

Os debates televisivos são o circo máximo desta encenação: gritos, interrupções, frases de efeito. Aparenta-se confronto, mas, no fundo, todos jogam dentro da mesma cerca. Nunca se discute a liberdade do rebanho, apenas quem vai conduzi-lo à tosquia.

A verdadeira política — a que nasce da base, das assembleias livres, do pensamento crítico e da solidariedade — raramente vê a luz. E, no entanto, é nela que repousa a única possibilidade de quebrar o ciclo da manipulação.

Capítulo 17 – O Medo: O Chicote Invisível

Não é preciso corrente de ferro quando o medo já acorrenta a mente. O medo é o chicote invisível dos pastores — mais eficaz do que mil cães. É ele que mantém o rebanho unido, dócil, resignado.

O medo assume muitas formas: - O medo da fome e da miséria. - O medo de perder o emprego. - O medo da exclusão social. - O medo da diferença. - O medo da repressão. - O medo de pensar por conta própria.

A política e a religião aprenderam a explorá-lo. Prometem segurança em troca de submissão, estabilidade em troca de silêncio, salvação em troca de obediência. E o rebanho aceita, porque aprendeu que arriscar é perigoso, que pensar é herético, que discordar é pecado.

O medo cria a cerca dentro da cabeça. Mesmo que não haja muros, a ovelha já não ousa sair. Mesmo que não haja cães, ela já não corre. Mesmo que não haja pastor, ela já se comporta como se fosse vigiada.

E, no entanto, há uma verdade simples: o medo só tem poder enquanto o alimentamos. Basta um instante de coragem para que o chicote se quebre. É por isso que regimes tremem diante de um único ser humano que perde o medo.

Capítulo 18 – A Tecnologia: As Novas Cercas Digitais

Se antes eram as correntes de ferro, depois os muros de pedra, hoje são os cabos de fibra e as ondas invisíveis que nos aprisionam. A tecnologia, esse prodígio humano, que poderia libertar, tornou-se também cerca e pastor.

Vivemos numa era em que a vigilância já não se vê: - Não há guardas armados na esquina, mas câmaras em cada rua. - Não há censores de toga, mas algoritmos que decidem o que podemos ler. - Não há cadeias de ferro, mas dependência digital que transforma o telemóvel na algema mais elegante da história.

A tecnologia não obriga: seduz. Não força: conquista. Não ameaça: oferece conveniência. E o rebanho aceita, feliz, porque não vê a cerca. Compra-a, instala-a e renova-a todos os anos, acreditando que é liberdade.

Mas cada passo dado no mundo digital é também uma pegada deixada para os pastores invisíveis. As grandes corporações e os governos armazenam, cruzam e analisam cada dado, construindo retratos psicológicos mais fiéis do que qualquer espelho. Não somos cidadãos: somos perfis, algoritmos vivos, linhas de código prontos a ser monetizados.

E, no entanto, a tecnologia pode libertar. O que aprisiona não é a máquina, mas a intenção dos que a controlam. O desafio é transformar a rede em caminho de consciência, e não em teia de manipulação.

Capítulo Final – Da Condição de Rebanho à Consciência Humana

A humanidade sempre caminhou como um vasto rebanho. Uns, guiados pela fé cega; outros, empurrados pelo medo; quase todos, resignados à voz dos pastores. Mas se o rebanho foi até hoje a imagem dominante, resta-nos perguntar: será esse o destino inevitável?

A infância da humanidade não pode ser eterna. Crescer é doloroso, implica perder a ingenuidade e assumir a responsabilidade. O mesmo se pede aos povos: despertar do sono bovino e compreender que ninguém os libertará, se não forem eles mesmos a libertar-se.

Como passar do rebanho à consciência? - **Educação crítica**: ensinar a duvidar, a perguntar, a pensar. - **Cultura cívica**: fiscalizar o poder, participar, assumir responsabilidades. - **União em grandes causas**: justiça, dignidade, preservação do planeta. - **Exercício diário da liberdade**: dizer não ao que desumaniza, escolher a montanha em vez do curral.

Imaginemos uma humanidade que já não precisa de pastores nem de cães. Homens e mulheres que caminham lado a lado, não por medo, mas por escolha. Governos que servem, economias que cuidam, escolas que libertam.

O futuro dependerá menos da força dos pastores e mais da coragem das ovelhas em deixarem de o ser. Porque o destino do ser humano não é pastar. É erguer-se, pensar, criar, ser livre.

F – I - M

Contracapa do livro