BOX DE FACTOS
  • Em 2025, Donald Trump regressa à Casa Branca e apresenta um plano em 28 pontos para a Ucrânia que consagra, de facto, a Crimeia, Luhansk e Donetsk como território russo.
  • Putin declara que tomará todo o Donbass — Donetsk e Luhansk — "pela força ou de outra forma", enquanto intensifica a ofensiva militar no terreno.
  • A União Europeia discute um pacote de cerca de 90 mil milhões de euros para apoiar a Ucrânia, financiado por empréstimos e pelo rendimento de activos russos congelados, entre hesitações políticas e receios jurídicos.
  • O chamado "mundo livre" exibe fadiga, medo do custo político e falta de coesão estratégica, abrindo espaço à normalização da agressão e ao esvaziamento prático do direito internacional.
  • A combinação Trump–Putin, com a China à espreita, transforma a ordem internacional num baile cínico onde os predadores escrevem as regras ao som do cansaço das democracias.

Trump, Putin e o Enterro Silencioso do Direito Internacional

Num mundo ideal, o regresso de um presidente à Casa Branca seria apenas mais um capítulo na alternância democrática. No mundo real de 2025, a segunda presidência de Donald Trump, o seu plano de "paz" em 28 pontos para a Ucrânia e a coreografia cúmplice com o predador Putin estão a abrir uma fenda histórica: a passagem discreta, quase burocrática, de uma ordem internacional baseada em regras para uma patuscada de ditadores, onde a força compra território e a fadiga moral compra silêncio.

1. A viragem de 2025: quando o lobo entra pela porta da frente

Em Janeiro de 2025, Trump regressa ao poder, não como figura excêntrica a testar limites, mas como protagonista de um regresso em força, com o ressentimento de quem se julga perseguido e a convicção messiânica de que "veio salvar a América". O problema é que, nesta narrativa salvadora, a Ucrânia torna-se moeda de troca e o direito internacional transforma-se em obstáculo descartável.

Poucos meses depois, o novo Presidente apresenta o famoso "plano em 28 pontos" para pôr fim à guerra na Ucrânia. No papel, fala-se de "cessar-fogo", "garantias de segurança" e "novo arranjo europeu". Na prática, o coração do plano é simples e brutal: a Crimeia, Luhansk e Donetsk são reconhecidas de facto como russas; Kherson e Zaporizhia são congeladas na linha de frente, cristalizando no mapa a violência da invasão. A agressão russa deixa de ser um crime a reparar e passa a ser um facto consumado a legalizar.

Washington apresenta-se como árbitro magnânimo, distribuindo pedaços de território ucraniano como se estivesse a redesenhar um tabuleiro de xadrez com peças que lhe pertencem. A Europa, apanhada entre o medo de ficar isolada e a dependência da protecção norte-americana, hesita, protesta, mas acaba por entrar na dança do "vamos ver o que é possível".

2. O plano Trump: paz como outro nome para capitulação

Os defensores do plano repetem a palavra "paz" como um mantra hipnótico. Mas a paz que aqui se desenha não é o fim da violência: é a aceitação da violência como método legítimo de alteração de fronteiras. Em nome de evitar mais mortos hoje, entrega-se ao agressor aquilo que ele não conseguiu conquistar totalmente pelo uso da força.

O plano propõe que a Ucrânia renuncie explicitamente a territórios que ainda controla em parte, aceitanto uma soberania mutilada em troca de promessas vagas de garantias de segurança. Fala-se de "não-agressão" futura, como se alguém pudesse assinar com Putin um cheque em branco de boa fé, depois de 2014, 2022 e de todos os acordos violados entretanto.

Para a Europa, o recado é igualmente claro: o centro de gravidade desloca-se ainda mais para Washington e Moscovo. A União Europeia é chamada a pagar a factura da reconstrução ucraniana, a gerir refugiados, a lidar com as ondas de choque económicas e energéticas, mas é mantida numa cadeira lateral quando chega a hora de redesenhar o mapa. A mensagem implícita é devastadora: a soberania europeia existe, desde que não interfira com o teatro principal entre Trump e Putin.

3. Putin, o predador que aprendeu a ler o cansaço do Ocidente

Do lado de Moscovo, a leitura é cristalina. Putin olha para o plano e vê exactamente aquilo por que tem lutado desde 2014: legitimação internacional, ainda que mascarada, da anexação da Crimeia e da ocupação de grande parte do Donbass. Vê também algo ainda mais precioso: a confirmação de que o Ocidente, dividido e exausto, está disposto a trocar princípios por "estabilidade".

Não é por acaso que, em paralelo com as negociações, Putin declara publicamente que tomará todo o Donbass "pela força ou de outra forma". É o grito de guerra de quem percebe que a ameaça se tornou instrumento de negociação, não de isolamento. Cada cidade tomada, cada quilómetro conquistado à custa de vidas ucranianas, transforma-se em ficha de póquer a usar na mesa das "conversações de paz".

O resultado é perverso: quanto mais brutal a ofensiva, maior o poder de barganha do agressor. A fórmula que ecoa nos corredores das capitais torna-se esta: "melhor ceder agora um pedaço de território do que arriscar uma guerra maior". Assim se fabricam derrotas morais com linguagem diplomática.

4. A fadiga moral das democracias

A história não é feita apenas de tanques e mísseis. É feita também de cansaço. Depois de anos de crise financeira, pandemia, inflação, guerra às portas da Europa, ondas sucessivas de desinformação e polarização interna, as democracias entram em fadiga moral. O cidadão comum, sobrecarregado com problemas diários, ouve falar de Donetsk, Luhansk, Kherson e já só deseja que alguém desligue o ruído de fundo.

É neste terreno cansado que floresce o discurso do "seja como for, desde que acabe". Os líderes, obcecados com ciclos eleitorais curtos, sentem a tentação de escolher o caminho que produz uma fotografia de assinatura de acordo, mesmo que seja uma capitulação disfarçada. O pedagogo desaparece, o estadista encolhe-se, e sobra o gestor de sondagens.

A União Europeia continua a aprovar pacotes de sanções e a desenhar planos para usar o rendimento de activos russos congelados em apoio à Ucrânia, mas fá-lo aos solavancos, entre vetos internos, receios jurídicos e a sombra constante de governos simpáticos a Moscovo. O "mundo livre" parece uma orquestra afinada em comunicados mas desafinada na acção.

5. Da ordem baseada em regras à patuscada dos predadores

Durante décadas, falou-se de "ordem internacional baseada em regras". A expressão era optimista, por vezes hipócrita, mas apontava para um ideal: mesmo as grandes potências reconheceriam que há limites, tratados, fronteiras que não se alteram à bala. Em 2025, o risco é outro: que essa expressão sobreviva apenas como decoração de discursos, enquanto, na prática, o mundo se transforma numa festa fechada de predadores.

Trump oferece a Putin a normalidade: trata-o como parceiro inevitável, alguém com quem é preciso "fazer negócio" para limpar o dossier ucraniano da agenda e reivindicar uma vitória diplomática que agrade ao eleitorado cansado de notícias sobre a guerra. Putin oferece a Trump a ilusão de grande negociador: o homem que "acabou com a guerra", mesmo que à custa dos direitos de um povo que não votou em nenhum dos dois.

À volta, outros actores autoritários observam. A China toma notas sobre como o mundo reage quando uma potência nuclear redesenha fronteiras pela força e é, no fim, recompensada com um lugar de honra na mesa das negociações. Regimes menores olham e aprendem: se a agressão compensa, se o direito internacional é negociável, por que não arriscar?

6. O "se" que podia ter mudado a história

Imaginemos, por um momento, um outro roteiro. Desde 2014, após a anexação da Crimeia, os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido, o Canadá, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália assumem uma posição inequívoca: qualquer agressão territorial, presente ou futura, implicará sanções automáticas e esmagadoras, apoio militar robusto à vítima e isolamento total do agressor nas instâncias internacionais.

Em 2022, quando a invasão em larga escala começa, essa frente unida actua em sincronia, sem hesitações nem cálculos pequenos. Em 2025, em vez de um plano que congela no mapa a violência russa, teríamos um plano que parte de um princípio inegociável: agressão não é uma modalidade de negociação, é um crime a reparar. Nesse mundo alternativo, a Ucrânia teria chegado mais forte a 2025, e Putin, mais isolado do que nunca.

Não sabemos se esse alinhamento perfeito teria evitado a guerra. Mas sabemos isto: o custo de a começar teria sido muito mais alto para o agressor, e o custo de a tolerar seria politicamente incomportável para as democracias. Em vez disso, escolheu-se o caminho da ambiguidade, do cálculo táctico, da reacção lenta. E é nesse intervalo que dois homens, Trump e Putin, encontraram espaço para transformar o tabuleiro global numa patuscada de ditadores.

7. Epílogo: memória contra a capitulação

O que resta aos cidadãos que ainda se importam com a ideia de justiça internacional, com a palavra dada em tratados, com a noção de que fronteiras não são linhas de giz apagadas ao gosto do mais forte? Resta, antes de mais, dizer as coisas pelo nome. Não é "plano de paz"; é um projecto de capitulação parcial. Não é "concessão territorial"; é recompensa por agressão. Não é "negócio inevitável"; é a abdicação consciente de princípios que custaram guerras, séculos e vidas.

Resta também recusar o cinismo confortável do "são todos iguais". Não são. Há diferenças reais entre quem, com todos os defeitos, tenta preservar regras mínimas, e quem as rasga para normalizar o saque. A equiparação preguiçosa é o melhor presente que se pode oferecer aos predadores: dissolve a responsabilidade, desculpa tudo, anestesia consciências.

Por fim, resta a memória. Escrever, arquivar, registar. Contar aos que vierem depois que, em 2025, houve quem visse o que estava a acontecer e não aceitasse que a história fosse reescrita apenas pelos vencedores momentâneos. A escrita não pára tanques, mas impede que, amanhã, alguém diga que "ninguém sabia", que "foi inevitável", que "não havia alternativa".

No meio da barafunda de comunicados, conferências de imprensa e planos de paz em vinte e oito pontos, a resistência começa muitas vezes num gesto humilde: recusar a mentira suave, chamar crime ao crime, e lembrar ao mundo que o direito internacional não é um adorno — é a fina película que separa civilização de selva. Quando essa película se rompe, não sobra neutralidade: ou estamos com quem a tenta remendar, ou acabamos, um dia, convidados para o baile dos predadores.

Fontes de referência (seleccionadas): cobertura internacional sobre o plano em 28 pontos de Trump para a Ucrânia (Al Jazeera, Sky News, Axios, CSIS, IRIS), declarações públicas de Vladimir Putin sobre a tomada integral do Donbass, análises sobre a utilização de activos russos congelados pela União Europeia e documentação de sanções e pacotes de apoio à Ucrânia publicados por instituições europeias e meios de comunicação internacionais.

Escrito por Francisco Gonçalves, com a colaboração de Aletheia Veritas & Augustus Veritas Lumen (IA).
Esta crónica integra a série "Contra o Teatro da Mediocridade" em Fragmentos do Caos.
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