Serviço Militar ou Serviço à República? Portugal entre o Quartel e o Futuro

BOX DE FACTOS
- Portugal aboliu o serviço militar obrigatório em 2004, passando a um modelo de forças profissionais.
- O país enfrenta envelhecimento demográfico, fuga de jovens qualificados e fragilidade estrutural em áreas críticas do Estado.
- Os conflitos modernos são cada vez mais tecnológicos: ciber-guerra, desinformação, drones, satélites, infra-estruturas críticas.
- Reintroduzir o velho modelo de quartel seria regressar a um país pobre, obediente e pouco qualificado.
- A alternativa é um Serviço à República: cívico, militar, social e tecnológico, com impacto real na sociedade.
Serviço Militar ou Serviço à República? Portugal entre o Quartel e o Futuro
A pergunta não é se Portugal deve recuperar o serviço militar. A pergunta séria é outra: se este país ainda tem coragem, inteligência e decência para criar um verdadeiro Serviço à República, que sirva o povo e não o carreirismo partidário.
O fantasma do quartel antigo
Quando se fala em "recuperar o serviço militar", o que ainda assombra a memória colectiva é o velho modelo de quartel: rapazes arrancados à vida, aos estudos ou ao trabalho, metidos num mundo de ordens aos gritos, camas alinhadas como se fosse uma linha de montagem humana e semanas inteiras a marchar em círculos para não chegar a lado nenhum.
Esse serviço militar obrigatório foi, durante décadas, o prolongamento de um país atrasado: mão-de-obra barata com farda, disciplina muitas vezes confundida com humilhação, desigualdades gritantes entre quem "tinha contactos" e quem apenas tinha de se resignar. Um ritual de passagem que, em demasiados casos, mais adormecia do que acordava consciências.
Recuperar esse modelo seria apenas isto: reinstalar um passado que muitos idealizam por nostalgia, mas que poucos suportariam de novo, agora que o mundo exige cérebro, criatividade e autonomia, e não apenas obediência automática ao apito do sargento.
Um mundo novo, com guerras velhas
O planeta não ficou mais pacífico. Mudou foi a forma como se faz guerra. Hoje, ataca-se um país desligando-lhe a energia, o sistema bancário, as comunicações, os hospitais. Um vírus informático pode ser tão destrutivo como uma bomba mal colocada. Um enxame de drones pode valer mais do que um batalhão inteiro a marchar na parada.
Portugal, pequeno na geografia mas vulnerável em quase tudo o resto, vive num cruzamento perigoso: envelhecimento acelerado, juventude a emigrar, Estado pesado e incompetente, dependência económica de sectores frágeis. A pergunta honesta não é "precisamos de mais recrutas?", é: em que é que realmente precisamos de preparar os nossos jovens?
A resposta não cabe num quartel do século passado. Cabe num país que queira sobreviver com alguma dignidade no século XXI: defesa cibernética, protecção civil séria, literacia tecnológica, capacidade de resposta a catástrofes, apoio social estruturado, Estado digital que funcione de verdade.
Do serviço militar ao Serviço à República
Em vez de regressar ao velho "vai para a tropa e cala-te", faria infinitamente mais sentido criar um Serviço Nacional à República, obrigatório para todos, mas flexível nas vias e inteligente nos objectivos.
Imaginemos um período de 6 a 12 meses, entre os 18 e os 21 anos, em que cada jovem tivesse de escolher uma de várias vias:
- Via militar, para quem tem vocação, perfil e vontade de servir em armas num quadro moderno e tecnicamente exigente.
- Via de protecção civil, dedicada a prevenção e resposta a incêndios, cheias, sismos, apoio logístico em catástrofes.
- Via social, a trabalhar em lares, hospitais, centros comunitários, apoio escolar em zonas pobres, combate à exclusão.
- Via tecnológica, ao serviço da transição digital: ciber-defesa, segurança de redes, digitalização de serviços públicos, apoio a municípios e instituições sem meios técnicos.
Em todas as vias, a mesma espinha dorsal: disciplina sem humilhação, exigência sem autoritarismo cego, formação séria em primeiros socorros, literacia financeira, ética pública, comunicação, resolução de conflitos, trabalho em equipa. Menos culto do grito, mais cultura de responsabilidade.
Um jovem que passasse por um ano destes não sairia apenas "com um papel". Sairia com a experiência concreta de ter servido algo maior do que o seu umbigo, de ter visto o país real para além da bolha social onde nasceu, e com competências úteis tanto para a sua vida pessoal como profissional.
O perigo de ser mais um "serviço à portuguesa"
Mas aqui entra o lado incómodo. Portugal não falha por falta de ideias. Falha, quase sempre, na forma como as deforma. O risco gigante de um Serviço à República é tornar-se exactamente aquilo que diz combater: mais um aparelho burocrático para distribuir cargos, chefias, lugares de coordenação, relatórios, reuniões, organogramas coloridos… e pouco, muito pouco serviço efectivo.
Em vez de um choque de cidadania, poderíamos acabar com um estacionamento obrigatório de juventude: um ano a carimbar presenças, a cumprir programas vazios, a ser alvo de formações medíocres dadas por quem nunca foi avaliado a sério em nada.
Por isso, falar de Serviço à República não é discutir um decreto-lei. É discutir carácter institucional: quem desenha o modelo, quem o dirige, quem avalia, quem tem coragem para o fechar ou reformar se começar a resvalar para a rotina inútil e para o compadrio.
Em que condições eu diria "sim"
Se a pergunta for: "Devemos recuperar, tal e qual, o serviço militar obrigatório?", a resposta é clara: não. Esse país já não existe, e ainda bem.
Mas se a pergunta for: "Devemos criar um Serviço Nacional à República, exigente, transparente e moderno, onde militar, social, cívico e tecnológico se encontrem?", então a resposta muda: sim, se…
- Se for concebido por gente competente, com visão e experiência real.
- Se for avaliado de forma implacável, com indicadores claros e públicos.
- Se for blindado à partidocracia e às nomeações de conveniência.
- Se as vias de serviço forem ligadas, de forma séria, a oportunidades de emprego, estágios, formações superiores e carreiras públicas e privadas.
- Se for um espaço onde se aprende a pensar, a agir e a servir — e não apenas a obedecer.
Em suma: só faz sentido dizer "sim" se o objectivo não for encher quartéis, mas acordar cidadãos.
Entre o quartel e o futuro
Portugal está, mais uma vez, numa encruzilhada estranha. Fala-se de recuperar coisas antigas como se o simples acto de voltar atrás trouxesse automaticamente virtudes perdidas. Mas o futuro não se constrói com cópias desbotadas do passado.
Recuperar o velho serviço militar seria apenas uma forma melancólica de dizer à juventude: "Não sabemos o que fazer convosco, por isso vão ali marchar um pouco". Criar um verdadeiro Serviço à República seria, pelo contrário, um gesto claro: "Precisamos de vós para reconstruir o país, e vamos levar isso a sério".
A diferença entre uma coisa e outra é a mesma que separa um país que se limita a sobreviver de um país que, apesar de pequeno, decide crescer em consciência, carácter e lucidez. Entre o quartel e o futuro, a escolha continua a ser profundamente política — e brutalmente ética.
Talvez um dia, quando alguém perguntar "Portugal voltou a ter serviço militar?", a resposta mais bela seja outra: "Não. Portugal criou algo maior: ensinou uma geração inteira a servir a República antes de servir qualquer partido, qualquer chefe ou qualquer interesse privado."
Escrito por Francisco Gonçalves em diálogo crítico e fraterno com Augustus Veritas Lumen, numa tarde em que o passado bateu à porta, mas foi o futuro que pediu a última palavra.
Co-autoria conceptual: Fragmentos do Caos & Veritas Lab.