Retrato de um País Traído: A Governação como Crime sem Castigo

BOX DE FACTOS
- Décadas de fundos europeus: Portugal recebeu centenas de milhares de milhões em fundos desde a adesão à CEE, sem conseguir romper o ciclo estrutural de baixa produtividade.
- Dívida como modo de vida: A dívida pública portuguesa permaneceu durante anos próxima ou acima de 120% do PIB, hipotecando o futuro de várias gerações.
- Economia frágil e dependente: Turismo e serviços de baixo valor continuam a ser pilares centrais, deixando o país vulnerável a choques externos e crises sucessivas.
- Corrupção sistémica: Escândalos bancários, PPP ruinosas e negócios de bastidores consumiram recursos públicos sem verdadeira responsabilização criminal ao mais alto nível.
- Impunidade como sistema operativo: As comissões de inquérito sucedem-se, os processos arrastam-se, a memória pública esgota-se — e quase ninguém é exemplarmente condenado.
Retrato de um País Traído: A Governação como Crime sem Castigo
Há crimes que não precisam de balas, nem de quartéis, nem de tanques nas ruas. Há crimes contra a Pátria que se cometem com canetas, despachos, pareceres "em conformidade" e sorrisos técnicos em conferências de imprensa. São crimes suaves, administrativos, perfeitamente legais na forma — mas moralmente equivalentes a abandonar um povo num deserto, depois de lhe ter prometido um jardim.
O que se tem feito a Portugal nas últimas décadas não é apenas má governação. É algo mais fundo, mais subtil e mais devastador: é a normalização da irresponsabilidade, a privatização do futuro e a redução da Pátria a um stock de activos negociáveis. É a transformação do Estado num balcão onde poucos lucram e muitos pagam, sempre.
Quando a Pátria vira balcão e o futuro vira hipoteca
Durante anos, o país foi apresentado como um "caso de sucesso europeu". Crescimento com fundos comunitários, auto-estradas, rotundas, estádios, "projectos estruturantes", PPP luminosas. Na narrativa oficial, Portugal modernizava-se. Na realidade, erguia-se um cenário de cartão: por detrás da fachada de betão, permaneciam a baixa produtividade, a dependência tecnológica, a fragilidade industrial e a eterna obsessão com o curto prazo.
Cada ciclo de fundos europeus foi vendido como a grande oportunidade histórica. E, no entanto, aqui estamos: dívida colossal, sistema público asfixiado, serviços essenciais degradados, juventude empurrada para salários de miséria ou aviões low-cost rumo a outros países. O futuro, esse, foi penhorado com elegância: contratos, parcerias público-privadas, resgates bancários, benefícios fiscais selectivos, grandes obras de utilidade duvidosa.
O crime está precisamente aí: em usar o nome da Pátria para reforçar a servidão financeira, em hipotecar três ou quatro gerações para salvar bancos, concessionárias e interesses privados. Em fazer da dívida um modo de governação, e do sacrifício dos cidadãos um dado "inevitável" da equação.
A alta traição em versão soft: incompetência, clientelas e servidão
A traição à Pátria no século XXI não vem fardada nem marcha ao som de tambores. Vem disfarçada de "estabilidade", "responsabilidade orçamental", "atração de investimento", "parcerias estratégicas" e "reformas inevitáveis". A gramática é suave; o resultado é brutal.
Trair a Pátria é saber que um modelo económico não gera riqueza suficiente para todos — e, mesmo assim, insistir nele porque garante lucros a poucos. É aceitar um país assente em salários baixos, empregos precários e fuga de cérebros, enquanto se celebra o turismo como tábua de salvação permanente. É sacrificar indústria, ciência e tecnologia em nome de um presente confortável para a oligarquia instalada.
Trair a Pátria é assistir, em câmara lenta, à captura de sectores estratégicos por interesses privados, nacionais ou estrangeiros, e chamar a isso "modernização". É permitir que o Estado funcione como ascensor social ao contrário: quanto mais alto se sobe na escala de influência, mais fácil é escapar à responsabilização e transformar o serviço público numa carreira privada de privilégios.
E tudo isto é feito sem um tiro, sem uma sirene de alarme, sem tanques na rua. Pelo contrário: com cimeiras, cadernos de encargos, jantares de gala, conferências sobre "inovação", planos estratégicos em powerpoints coloridos e muita retórica sobre "resiliência".
Corrupção: não é desvio, é arquitectura
Em Portugal, a corrupção não é um acidente da estrada. É parte do traçado. É um desvio calculado que sai caro ao povo e barato a quem o pratica. Bancos que implodem depois de anos de loucura conivente, negócios com regimes estrangeiros pouco recomendáveis, concessões blindadas que garantem rendas durante décadas, resgates públicos para cobrir buracos privados — o catálogo é longo, monotonamente longo.
Aqui, a traição à Pátria é de colarinho branco e cartão de visita. Não acontece numa noite de golpe de Estado; espalha-se por anos de nomeações, ajustes directos, pareceres cúmplices e silêncios bem pagos. Quando tudo rebenta, a narrativa é sempre a mesma: "falhas do sistema", "erros de gestão", "casos isolados", "circunstâncias excepcionais".
O que nunca se diz é o essencial: houve escolhas. Houve beneficiados. Houve alertas ignorados. Houve sinais evidentes de captura do Estado que foram varridos para baixo do tapete em nome da conveniência. A Pátria não foi traída por acidente; foi vendida em prestações.
Justiça lenta, memória curta: o manual da impunidade
Num país com memória longa e justiça célere, estes crimes teriam nomes, datas, rostos e condenações. Em Portugal, têm apenas comissões de inquérito, conferências de imprensa, indignação de fim-de-semana e processos que atravessam décadas, até que a opinião pública se canse e mude de canal.
A impunidade não é apenas uma consequência; é um instrumento. Quando quem governa sabe que dificilmente será responsabilizado, a tentação de usar o Estado como extensão de interesses privados torna-se quase irresistível. O risco é mínimo; o lucro é máximo; o povo paga a factura e ainda agradece se a propaganda for bem feita.
Assim se converte a traição à Pátria num crime sem tipo legal. Não se chama "alta traição", chama-se "gestão política". Não se chama "pilhagem ao erário público", chama-se "opção estratégica". Não se chama "abandono do povo", chama-se "inevitabilidade económica". Tudo muito higiénico, muito técnico, muito moderado.
Um país de salários baixos, sonhos amputados e turismo em modo anestesia
Enquanto isso, a vida real corre noutro cenário. Jovens altamente qualificados aceitam empregos de 800 ou 900 euros, quando os há. Outros tantos fazem as malas e constroem vida lá fora. Famílias esmagadas pela habitação, trabalhadores exaustos, serviços públicos degradados, um interior que se despovoa, um litoral congestionado, uma economia que vive de servir quem aterra, passa e parte.
O turismo, elevado a milagre económico, funciona como anestesia colectiva: entra dinheiro rápido, multiplicam-se hotéis, alojamentos locais, serviços sazonais. Mas a estrutura permanece frágil; basta uma crise internacional, uma pandemia, uma guerra mais próxima, para que a "euforia" se transforme em susto. Construir o futuro de um país em cima de voos low-cost é um erro estratégico de proporções históricas.
Quando um povo é reduzido a figurante num parque temático para visitantes, algo de profundo foi traído. A Pátria não é um postal ilustrado; é um projecto de futuro. E um projecto de futuro não se faz com salários de miséria, precariedade permanente e venda a retalho da soberania económica.
Onde começa a resistência à traição?
A primeira forma de resistência é simples e radical: dar nome às coisas. Chamar crime moral ao que é crime moral, mesmo que a lei nunca o reconheça como tal. Chamar traição àquilo que, na prática, entrega o futuro dos cidadãos a jogos de interesses que eles não controlam. Recusar a linguagem anestésica do "inevitável".
A segunda forma de resistência é não aceitar a amnésia programada. Relembrar, registar, escrever, arquivar. Guardar a memória dos escândalos, dos saques, das decisões ruinosas. Construir um arquivo vivo da infâmia, para que as gerações futuras saibam que isto não aconteceu por acaso, nem sem avisos, nem sem vozes que se levantaram.
A terceira forma de resistência é mais difícil, mas inadiável: construir alternativas. Não apenas alternância de partidos, mas alternativas de modelo: uma economia assente na criação de valor real, na ciência, na tecnologia, na indústria inteligente, na cultura como força de futuro. Um Estado magro em corrupção e gordo em justiça. Um país que olhe para os seus filhos como projecto de dignidade, e não como mão-de-obra descartável.
Epílogo: a Pátria não é deles — é nossa
A grande ilusão destes últimos 50 anos foi convencer-nos de que a Pátria pertence aos que mandam. Não pertence. A Pátria não é o Parlamento, nem os gabinetes ministeriais, nem os conselhos de administração que orbitam em torno do orçamento de Estado. A Pátria é a soma de todas as vidas que trabalham, criam, falham, insistem e sonham neste pequeno rectângulo à beira-mar.
Quando a governação se transforma num mecanismo de traição repetida, o dever de fidelidade à Pátria passa a ser, inevitavelmente, um acto de desobediência moral ao regime de mediocridade. Não é revolta cega, é lucidez. Não é ódio, é amor exigente. Não é destruição, é reconstrução radical.
Um dia, quando alguém abrir os arquivos deste tempo e ler as crónicas amargas que fomos escrevendo, talvez perceba que, no meio deste teatro de corrupção e impunidade, houve quem se recusasse a bater palmas. Quem ergueu a voz e chamou pelo nome aquilo que outros embrulharam em eufemismos. Quem, em silêncio teimoso, sussurrou: a Pátria não é deles. É nossa. E não será para sempre traída.
Escrito por Francisco Gonçalves, com a cumplicidade literária de Augustus Veritas Lumen.
Esta crónica integra a série "Contra o Teatro da Mediocridade", dedicada a registar, com memória e ferocidade serena, as várias formas de traição ao interesse colectivo, que marcam a história recente de Portugal, na últimas cinco décadas.