Quando o Regulador Existe a Sério: a Multa Polaca à Jerónimo Martins

BOX DE FACTOS
- O regulador polaco da concorrência e defesa do consumidor (UOKiK) multou a Jeronimo Martins Polska em cerca de 105 milhões de zlotys (cerca de 25 milhões de euros) por campanhas de vouchers "100% de reembolso" consideradas enganosas.
- As campanhas "Specjalna Środa" e "Walentynkowa Środa" prometiam "100% de devolução em voucher", mas escondiam regras, limites e exclusões que só eram revelados depois da compra.
- O UOKiK já tinha aplicado outras coimas milionárias à Biedronka por práticas de preços enganosos e campanhas promocionais com condições opacas.
- Na Polónia, além da empresa, membros da administração podem ser pessoalmente responsabilizados e multados por práticas que prejudiquem os consumidores.
- Em Portugal, apesar de sucessivos escândalos económicos e de consumo, a percepção pública é a de reguladores fracos, capturados ou desaparecidos em "processos" que raramente chegam a consequências sérias.
Quando o Regulador Existe a Sério: a Multa Polaca à Jerónimo Martins e o Faz-de-Conta Português
Na Polónia, o regulador olhou para uma campanha enganadora, fez contas e disse: "enganou os consumidores, paga 25 milhões de euros". Em Portugal, continuamos no país dos reguladores de vitrina: muita sigla, muito relatório, mas quase nenhuma dor para quem trapaceia milhões de pessoas todos os dias.
A promessa mágica do voucher e a factura de 25 milhões
Na Polónia, a cadeia Biedronka, detida pela Jerónimo Martins, decidiu brincar com fogo promocional. Lançou campanhas relâmpago – "Specjalna Środa" e "Walentynkowa Środa" – com um slogan irresistível "100% de devolução em voucher". Parecia simples: compra hoje, recebe tudo de volta em vale de compras amanhã. Quem é que resiste a um "tudo de volta" num país de salários comprimidos?
O problema, explicou o regulador UOKiK, é que a magia estava toda na letra pequena: o voucher não servia para "qualquer produto", mas apenas para categorias muito específicas; havia valores mínimos obrigatórios na compra seguinte, por vezes superiores ao próprio valor do voucher; algumas restrições só eram conhecidas quando o cliente já tinha pago e recebia o talão com o vale. A promessa era simples, a realidade era um labirinto.
Resultado: depois de analisar a campanha, recolher queixas, examinar cartazes, anúncios de rádio, app, redes sociais e comunicação em loja, o UOKiK concluiu que a Biedronka induziu os consumidores em erro e aplicou uma multa de cerca de 105 milhões de zlotys – qualquer coisa como 25 milhões de euros. Não é um puxão de orelhas. É uma chapada económica com som.
Um regulador com dentes (e memória)
A multa não cai do céu, nem é caso isolado. O UOKiK tem mantido a Jerónimo Martins sob vigilância cerrada: já antes aplicara uma coima de cerca de 160,9 milhões de zlotys por uma campanha "anti-inflação" onde os preços e os descontos eram tudo menos transparentes, e outra de 115 milhões de zlotys por violação de direitos dos consumidores em práticas de preços e rotulagem.
Além disso, o regulador polaco não olha apenas para o logótipo: olha também para as pessoas que decidem. Em vários processos, deixou claro que membros do conselho de administração podem ser pessoalmente responsabilizados por práticas enganosas, com multas dedicadas. A mensagem é cristalina: quem manda não pode fingir que não sabia.
Há aqui uma diferença civilizacional: na Polónia, o regulador não é um bibelô jurídico para decorar relatórios, é um instrumento de poder público que pode, de facto, mudar o comportamento de gigantes económicos. Não pede desculpa por existir, não espera "consensos" com quem viola as regras, não treme perante o tamanho da empresa.
Portugal: o país dos reguladores de vitrina
Voltemos, com alguma dor, ao rectângulo. Em Portugal, o cidadão comum é bombardeado por siglas: autoridade disto, entidade daquilo, comissão daqueloutro. O Estado regulador parece onipresente em documentos oficiais e conferências de imprensa, mas quase invisível quando um consumidor é realmente enganado, explorado ou esfolado ao centésimo.
Temos campanhas de "literacia financeira" a dizer ao povo para ler as letras pequenas, mas não temos a mesma energia quando é preciso chamar à pedra quem escreve essas letras pequenas para confundir, e não para informar. Temos reguladores que se pronunciam com solenidade depois de escândalos bancários, mas raramente vemos responsáveis efetivos a perder cargos, património ou liberdade.
Em tantas áreas – energia, telecomunicações, banca, seguros, retalho – a sensação que fica é a de um teatro regulamentar: muito cenário, muita cortina, muito microfone, mas pouca peça. E, sobretudo, nenhum acto final em que os actores abusadores sejam realmente expulsos do palco.
Regulação ou coreografia?
A pergunta que a multa polaca atira à cara de Portugal é desconfortável: queremos reguladores ou coreógrafos? Reguladores, no sentido forte, são instituições que recolhem provas, enfrentam departamentos jurídicos de luxo, resistem à pressão política, e no fim aplicam decisões com impacto real.
Coreógrafos, pelo contrário, limitam-se a desenhar danças burocráticas: abrem "processos de averiguação", pedem "esclarecimentos", publicam "recomendações", fazem "workshops", organizam "grupos de trabalho". No palco, tudo se mexe. Na vida real, nada se mexe.
Quando um país se habitua à regulação-coreografia, os grandes grupos económicos aprendem rapidamente a dança: sabem quanto podem esticar a corda, quanto tempo dura um inquérito, quanto custa um acordo, quanto vale apostar no desgaste do regulador até este desistir ou ser discretamente neutralizado por cima.
A lição polaca que Portugal não quer ouvir
O caso da Jerónimo Martins na Polónia é mais do que uma notícia de negócios. É um espelho colocado à frente de um país como o nosso. Mostra que é possível aplicar coimas que doem, obrigar à mudança de práticas e, sobretudo, dizer ao mercado: há limites para a criatividade na hora de enganar consumidores.
Portugal podia aprender muito com isto. Podia dotar os seus reguladores de mais meios, mais independência, mais transparência e, acima de tudo, mais coragem institucional. Podia tornar públicas, de forma implacável, as práticas lesivas, nomear empresas e gestores, abrir a porta a indemnizações colectivas quando milhões são enganados por campanhas que prometem o céu e entregam um subsolo com cupão riscado.
Mas para isso seria preciso algo que a nossa democracia formal raramente demonstrou: vontade política de enfrentar interesses instalados. É sempre mais confortável falar de "competitividade", "ambiente de negócios" e "estabilidade regulatória", enquanto o consumidor continua a pagar as festas todas – da factura da luz ao carrinho de compras.
Um dia, talvez, quando um grupo económico tentar brincar com os portugueses como hoje brinca com vouchers, pontos, descontos e promoções de papel molhado, haverá por cá um regulador que responda como o UOKiK respondeu à Biedronka: com provas, com decisão e com uma multa que não cabe numa folha de excel da rubrica "custo de fazer negócios".
Até lá, vamos assistindo, entre ironia e melancolia, à diferença entre países onde o Estado ainda se lembra que existe para proteger cidadãos e países onde o cidadão existe, sobretudo, para alimentar balanços e dividendos. A Polónia ensinou a lição. Resta saber se Portugal quer aprender ou prefere continuar sentado na sala de aula, a copiar actas de reguladores que não regulam.
Escrito por Francisco Gonçalves, em diálogo crítico com Augustus Veritas Lumen, à sombra de mais uma multa polaca,que ecoa, com estrondo, no silêncio complacente dos reguladores portugueses.
Co-autoria conceptual: Fragmentos do Caos & Veritas Lab.