Quando o Estado Premia os Espertos e Castiga os Honestos

BOX DE FACTOS
- Venda de habitação própria e permanente, com reinvestimento quase total em nova casa.
- Terreno adquirido antes da venda, construção faseada, tudo declarado ano após ano em IRS.
- Lei prevê exclusão de tributação de mais-valias com reinvestimento em HPP, mas a máquina fiscal acusa falha de reinvestimento.
- Cidadão transparente tratado como suspeito; sistema opaco tratado como infalível.
Quando o Estado Premia os Espertos e Castiga os Honestos
O cidadão faz tudo certo: declara a venda, declara o terreno, declara a construção, paga IMI, IVA e mais o que vier. No fim, o Estado olha para ele como se fosse culpado de um crime invisível: não ter reinvestido o suficiente, num jogo em que as regras mudam, mas a culpa é sempre do mesmo lado.
O labirinto da mais-valia: quando a lei deixa de ser clara
Há uma história que podia ser de qualquer um de nós. Um cidadão vende a sua habitação própria e permanente. Não é um especulador, não é um fundo imobiliário, não é um jogador de casino financeiro. É alguém que decide trocar a casa da vida por outra casa da vida, com raízes mais fundas e paredes alinhadas com o futuro.
Vende a casa, declara a venda, diz ao Estado: vou reinvestir. Antes da venda, já tinha comprado o terreno. Depois da venda, começa a construção. Tijolo a tijolo, fatura a fatura, IVA a IVA. Em 2020 declara um pedaço da obra. Em 2021 declara outro pedaço. Em 2022 fecha contas. Em 2023 começa a pagar IMI da casa nova. O que se pode querer mais de um cidadão?
No entanto, algures no coração frio de um algoritmo fiscal, surge a mensagem: "Não se verificou o reinvestimento, total ou parcialmente. Procede-se à liquidação da mais-valia não tributada." Assim, sem um telefonema, sem uma pergunta, sem um pingo de dúvida sobre a sua própria informação incompleta.
O cidadão transparente e o Estado opaco
O cidadão é obrigado a ser transparente: tudo o que faz, compra, vende, constrói, regista. A casa antiga, o custo de aquisição, a venda, o terreno, as fases da construção, cada cêntimo de IVA pago. Ano após ano, declaração após declaração, vai pondo a sua vida económica em cima da mesa das Finanças.
O Estado, pelo contrário, é opaco na hora em que mais deveria ser cristalino. Não explica claramente que parcela considera reinvestida, que valores ignora, que fórmula aplica. Não diz: "Aqui incluí o terreno, aqui descartei esta despesa, aqui tratei o reinvestimento como parcial." Limita-se a disparar uma carta automática: o prazo foi ultrapassado, o reinvestimento não se concretizou, pague.
E assim, a honestidade transforma-se num risco. Quem declara tudo fica mais exposto. Quem esconde, quem fragmenta, quem joga na penumbra, muitas vezes nem entra no radar. Os canais da evasão são discretos; o alvo preferencial é sempre quem está de peito aberto perante o sistema.
A máquina da suspeita: todos culpados até prova em triplicado
O Estado português construiu uma máquina fiscal que funciona como uma religião da suspeita. O dogma é simples: o contribuinte mente, o sistema tem razão. Se o contribuinte disser que reinvestiu, cabe-lhe provar e voltar a provar, até que alguém, num ecrã qualquer, consinta em acreditar nos dados que o próprio Estado já tem.
O cidadão mostra escrituras, declarações de IRS, comunicação de nova construção, notas de IMI da casa nova. Mostra que o terreno foi comprado antes, que a construção foi feita depois, que tudo encaixa nos prazos legais, incluindo a tal suspensão de dois anos decretada pela própria lei. Mas a carta que chega a casa fala outra língua: a língua do "não reinvestiu".
Há aqui uma inversão perversa: o Estado, que deveria ser o primeiro garante da boa-fé, comporta-se como se o cidadão fosse um infractor em potencial. E quando finalmente admite a possibilidade de erro, não é por convicção de justiça, mas por pressão do papel, da reclamação, do artigo citado, do número da lei colocado no sítio certo.
Entre a lei e a justiça: o abismo que engole a confiança
A lei diz que as mais-valias da habitação própria e permanente podem ficar excluídas de tributação se o valor da venda for reinvestido em nova casa. No papel, parece uma norma civilizada: o Estado não quer punir quem apenas troca de tecto, quem sobe um degrau de dignidade habitacional.
Mas a prática esvazia o espírito da lei. Em vez de um diálogo simples – "vendeu aqui, reinvestiu ali, vamos confirmar, está em ordem" –, o cidadão entra num labirinto de campos, anexos, artigos e prazos suspensos. Um milímetro de interpretação ao lado, uma leitura rígida do que devia ser flexível, e a justiça evapora-se. A boa-fé torna-se irrelevante. O que conta é a geometria fria do formulário e o dogma inabalável da máquina.
O resultado é devastador: não é apenas o dinheiro que está em causa, são anos de confiança a serem corroídos. Como confiar num sistema que nos trata como mentirosos justamente quando fizemos tudo como mandam as regras? Como acreditar num Estado que parece mais empenhado em cobrar do que em compreender?
O país dos canalhas sistémicos e dos honestos cansados
Não são apenas "canalhas" individuais. O pior é a canalhice sistémica: um desenho institucional que, ano após ano, normaliza o abuso subtil, a presunção contra o contribuinte, o desprezo pela sua inteligência e pela sua boa-fé. A corrupção não é só envelopes e contratos públicos; é também um sistema que desgasta quem cumpre e protege, por omissão, quem foge.
O cidadão honesto, que devia ser o centro da democracia fiscal, passa a ser um inimigo funcional da máquina: faz perguntas, reclama, pede fundamentação, exige transparência. Em vez de ser visto como parceiro do Estado, é tratado como incómodo estatístico que é preciso calar com números e códigos.
E assim, pouco a pouco, os honestos cansam-se. Não de pagar impostos – porque quem constrói, quem trabalha e quem cria riqueza sabe que a comunidade tem de ser sustentada – mas de ser tratados como suspeitos crónicos, enquanto os verdadeiros predadores navegam nas brechas da burocracia e nos salões discretos onde a lei se escreve com exceções sob medida.
Epílogo: não baixar a cabeça
Esta crónica não é um pedido de piedade fiscal. É um acto de recusa. Recusa em aceitar que um cidadão que vende a casa, compra o terreno, constrói a nova habitação, declara tudo e paga tudo seja tratado como um delinquente administrativo.
Reclamar, escrever, citar leis, exigir contas, é a forma mínima de resistência num país onde a mediocridade burocrática se disfarça de rigor e a injustiça se esconde atrás de um carimbo. Não se trata de fugir ao imposto devido, mas de recusar pagar aquilo que só existe porque a máquina errou e se recusa a admitir que erra.
Enquanto houver cidadãos dispostos a não baixar a cabeça, a escrever com números e palavras, a chamar canalhas aos mecanismos que o merecem, ainda há uma fresta de futuro. Porque um dia, talvez, a transparência deixe de ser um risco e passe a ser, finalmente, a norma.
Escrito por Francisco Gonçalves em coautoria digital com Augustus Veritas Lumen, na defesa dos cidadãos que cumprem e são tratados como suspeitos por um Estado que se esqueceu de que existe para servir, e que funciona como nos tempos da ditadura.
Publicado em Fragmentos do Caos, crónica em formato FC-Chronic-News.