BOX DE FACTOS

  • Escutas da Operação Influencer revelam um telefonema em que José Luís Carneiro pede um lugar para o ex-deputado Nelson Brito ao então ministro do Ambiente.
  • O agora secretário-geral do PS nega ter pedido favores e afirma que apenas "recomendou o perfil de uma pessoa" para funções públicas.
  • As escutas foram reveladas pela revista Sábado e ecoadas por vários órgãos de comunicação social.
  • A defesa de António Costa exige ao Ministério Público explicações sobre a divulgação faseada de escutas e sobre fugas de informação em processo em segredo de justiça.
  • No meio desta guerra de narrativas, o cidadão comum vê confirmada a sensação antiga: o Estado funciona à base de cunhas, favores e lealdades partidárias.

Portugal, República da Cunha: quando o favor se torna sistema

Em mais uma escuta, em mais um processo mediático, ouvimos aquilo que o povo sempre soube em silêncio: não se trata de excepções lamentáveis, mas de um método estrutural de distribuição de lugares. A esta prática antiga chamamos, com uma candura quase infantil, "recomendação de perfis".

A frase que diz tudo: "Não, com certeza que não"

Em gravações legalmente obtidas no âmbito da Operação Influencer, o secretário-geral do PS surge a pedir um emprego para um ex-deputado a um ministro em funções. O resumo é simples, quase banal na sua crueza: um dirigente partidário liga a um governante para ver se há lugar numa empresa pública ou participada onde se possa encaixar um camarada em trânsito.

Confrontado com o conteúdo das escutas, José Luís Carneiro responde com uma serenidade que arrepia: "Não, com certeza que não", não pediu favores; limitou-se a recomendar o perfil de uma pessoa para desempenhar determinadas funções. É esta normalidade que é chocante. Não há sequer vergonha, pudor, consciência de conflito ético. Há, sim, a convicção tranquila de que faz parte da paisagem: os partidos recomendam, os ministros encaixam, as empresas acolhem, o contribuinte paga.

A frase que devia ser um momento de defesa transforma-se, ironicamente, na mais brutal confissão colectiva: isto é o que sempre se fez. O problema não é apenas o conteúdo de uma chamada; é a cultura que ela revela, a estrutura invisível de favores, reciprocidades e dependências que sustenta a arquitectura real do poder em Portugal.

O Estado como agência de empregos para os "nossos"

Há décadas que o país suspeita, murmura, comenta à mesa do café: os partidos colonizaram o Estado; transformaram empresas públicas, reguladores, institutos e comissões obscuras em autênticas agências de colocação. Quem perdeu uma câmara? Há sempre uma administração de empresa municipal. Quem ficou sem mandato? Há uma empresa de águas, um porto, uma fundação, um grupo de trabalho, um gabinete qualquer onde se arranja uma "missão".

Não se chega lá por concurso sério, transparente, competitivo. Chega-se por afiliação, por fidelidade, por conveniência. O currículo pesa menos do que a biografia partidária; a competência técnica vale menos do que a lealdade política. E o Estado, que deveria ser o espaço de todos, torna-se um condomínio fechado para uma minoria rotativa que se alterna no poder, mas nunca abdica do privilégio.

É isto que as escutas expõem: não apenas um diálogo particular, mas um padrão de funcionamento. O gesto de telefonar a um ministro para perguntar por um lugar não é um acidente: é o manual de utilização do sistema. Em vez de um Estado profissional, temos uma teia de colocação de amigos, uma burocracia capturada por redes de influência que se protegem e reproduzem.

A outra vergonha: uma justiça que fala por fugas, não por sentenças

Mas a podridão não vive sozinha num só lado da mesa. Do outro lado, o Ministério Público e os mecanismos da justiça alimentam um espectáculo inquietante. As escutas são conhecidas por fugas cuidadas, gotejadas, quase sempre a tempo de produzirem impacto mediático, quase nunca acompanhadas da transparência devida para quem nelas é gravado ou investigado.

A defesa de António Costa protesta e exige explicações: que anda o Ministério Público a fazer? Por que motivo se libertam conteúdos de processos ainda em investigação, mantidos em segredo de justiça, sem que os próprios visados tenham acesso completo ao que é registado e transcrito? É uma pergunta incómoda, mas legítima. Porque um Estado de direito não se constrói com leaks selectivos nem com julgamentos antecipados em praça pública.

Assim, ficamos com o quadro completo da tragédia: de um lado, uma política que trata cargos públicos como se fossem lugares num clube privado; do outro, uma justiça que fala mais pela imprensa do que por decisões fundamentadas e céleres. Entre a promiscuidade e a opacidade, o cidadão vê apenas um teatro de sombras, onde a verdade é sempre relativa e a confiança morre todos os dias um pouco mais.

As vítimas silenciosas: quem não tem padrinho não tem lugar

Depois das escutas, das conferências de imprensa, dos editoriais inflamados, há sempre um grupo que permanece invisível: aqueles que nunca aparecerão numa gravação destas. Os jovens qualificados que enviam currículos para concursos públicos que já têm nome e rosto definidos. Os investigadores que concorrem a bolsas que se esfumam misteriosamente. Os técnicos competentes que nunca serão convidados para uma administração porque não pertencem à tribo certa.

São eles os verdadeiros expropriados do regime. Não exigem cargos, pedem apenas critérios claros e regras iguais para todos. Não conhecem ministros, conhecem o caminho da emigração. São eles que, ao olhar para estas notícias, confirmam o que sempre suspeitaram: a meritocracia em Portugal é um folheto de campanha, não uma prática concreta.

Cada favor colocado num topo de empresa pública é uma oportunidade roubada a alguém que, porventura, faria melhor. Cada "recomendação de perfil" que nasce numa chamada entre camaradas é um recado directo para milhares de cidadãos: não vale a pena acreditar, o jogo está viciado.

A vergonha legítima de um país que perdeu a noção de limite

Chamar a isto "vergonha nacional" não é exagero retórico; é um diagnóstico clínico. Um país tem vergonha quando percebe que a estrutura que o governa já não distingue com clareza o que é aceitável do que é inaceitável. Quando o acto de pedir um lugar para um camarada é descrito como um gesto normal. Quando a divulgação selectiva de escutas é tratada como um efeito colateral inevitável de processos complexos.

A vergonha é um sentimento moral saudável: indica que ainda há um resíduo de consciência, um eco de decência por baixo de camadas de cinismo. O problema de Portugal é outro: é a anestesia moral. A sensação de que "é assim mesmo", "sempre foi assim", "todos fazem o mesmo". Quando a indignação se esgota em dois dias de manchetes e três dias de comentários televisivos, o sistema respira de alívio: sobreviveu a mais um escândalo, pronto para o próximo.

Entre o país que temos e o país que fingimos ser

Oficialmente, somos um Estado de direito europeu, moderno, comprometido com a transparência, o mérito, a igualdade de oportunidades. Nas brochuras, nos discursos em Bruxelas, nos relatórios internacionais, esta é a narrativa que vendemos. Mas as escutas de hoje, como as de ontem e as de amanhã, revelam o país real: uma democracia capturada por aparelhos partidários, uma máquina administrativa onde o cartão de militante abre portas que anos de estudo não abrem, uma justiça que se habitou a julgar primeiro na praça pública e só depois nos autos.

Não estamos perante um deslize isolado. Estamos perante a radiografia de um regime que perdeu a coragem de se regenerar. A cada caso, promete-se reflexão, códigos de conduta, comissões, recomendações. Mas a engrenagem essencial permanece intacta: os partidos continuam a distribuir lugares, o Estado continua a tolerar, o povo continua a engolir.

Epílogo: um país que precisa de asseio

Há palavras que deviam voltar ao centro da nossa vida colectiva: decência, limite, serviço público, responsabilidade. E talvez uma ainda mais simples e antiga: asseio. Um país asseado não é um país perfeito; é um país que não tolera a confusão permanente entre o interesse de todos e o conforto de alguns. Um país onde recomendar alguém é possível, mas sempre com regras transparentes, concursos abertos, escrutínio real. Um país onde o Ministério Público fala pela clareza dos seus actos, não por fugas oportunistas.

Portugal precisa, mais do que reformas cosméticas, de uma higiene profunda do sistema. Enquanto aceitarmos que telefonemas entre camaradas decidem destinos profissionais, e que fugas de informação substituem o trabalho sério da justiça, continuaremos presos a esta condição triste: um país pequeno, de ambições amputadas, que se habituou a viver abaixo da sua própria dignidade.

Talvez um dia as escutas deixem de revelar favores e passem a revelar coragem. Coragem de dizer "não" ao amigo certo no momento errado; coragem de recusar o lugar fácil; coragem de construir um Estado que não precise de desculpas, apenas de trabalho sério. Nesse dia, poderemos enfim olhar para estas notícias como arqueologia de um tempo vergonhoso que decidimos superar.

Crónica publicada em Fragmentos do Caos.

Escrito por Francisco Gonçalves, em coautoria editorial com Augustus Veritas Lumen, na esperança teimosa de que a lucidez ainda possa ser uma forma de resistência.

🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
👁️ Esta página foi visitada ... vezes.