BOX DE FACTOS

  • Cinquenta anos de regime dito democrático em Portugal.
  • Ausência de uma cultura transversal de cidadania activa e crítica.
  • Educação capturada por narrativas oficiais e memorização acrítica.
  • Debate público dominado por slogans, manadas partidárias e "soundbites".
  • Risco real de repetir mais meio século de democracia apenas decorativa.

Meio Século de Democracia sem Cidadãos

Por muitos dos comentários que vou lendo, torna-se claro que, em cinquenta anos, esta "democracia" não se preocupou em formar cidadãos, apenas em fabricar gente treinada para repetir as histórias que lhe sopraram ao ouvido.

Democracia sem cidadania é um cenário pintado na parede

Meio século depois, o que chamamos "democracia" em Portugal parece, demasiadas vezes, um cenário de teatro mal montado: vota-se de quatro em quatro anos, mudam-se as caras na televisão, trocam-se os slogans nas vedações e nos outdoors, mas o essencial ficou por fazer — formar cidadãos livres, informados e capazes de questionar, com serenidade e firmeza, o poder que dizem ser "deles".

Em vez disso, o sistema preferiu um caminho mais cómodo: moldar mentalidades dóceis, treinadas para aceitar a narrativa pronta-a-servir que lhes é oferecida todos os dias, da escola aos telejornais, dos partidos às redes sociais. Não se tratou de um acidente histórico; foi, e continua a ser, uma opção política e cultural.

A fábrica de papagaios bem-comportados

Os comentários que se vão lendo nas praças digitais — e nas conversas de café — revelam o efeito acumulado desta lavagem suave, persistente e quase invisível. Gente inteligente repete frases feitas como quem recita um catecismo: "sempre foi assim", "todos são iguais", "não há alternativa", "a democracia é isto".

Em vez de questionar as regras do jogo, discute-se o clube, a cor da camisola, o líder da vez. O debate político transformou-se num campeonato de claques, e não numa construção colectiva de futuro. A educação, em vez de laboratório de pensamento crítico, foi reduzida a linha de montagem de currículos, exames, rankings e competências "úteis ao mercado".

E assim, geração após geração, formou-se não uma cidadania adulta, mas uma plateia infantilizada, dividida entre o cinismo ("isto nunca muda") e a ilusão ("desta vez é que vai ser"), ambas igualmente paralizantes.

Lavagem cerebral em modo suave e permanente

Não houve campos de reeducação nem propagandas aos gritos em alto-falantes de rua. A nossa lavagem cerebral foi mais sofisticada: discretamente embalada em manuais escolares, painéis de comentadores, novelas políticas e manchetes previsíveis.

A manipulação não se faz apenas com mentiras grotescas; faz-se, sobretudo, com meias-verdades repetidas até ao cansaço, com omissões convenientes, com a transformação da complexidade em slogans confortáveis. E, acima de tudo, com a mensagem silenciosa mas constante de que "podes opinar sobre tudo, mas não podes mexer em nada que conte verdadeiramente".

Os próximos 50 anos da "enternecedora democracia"

O perigo não está apenas no que fizemos nos últimos cinquenta anos, mas no que estamos dispostos a repetir nos próximos cinquenta. Uma democracia que não gera cidadãos críticos transforma-se numa vitrina decorativa, com direito a eleições, sondagens, debates televisivos e escândalos cíclicos, mas sem povo verdadeiramente soberano.

Sem uma ruptura profunda na forma como educamos, informamos e participamos, Portugal continuará a viver numa espécie de adolescência política prolongada: indignação ruidosa nas redes sociais, resignação silenciosa na vida real, e um voto que, demasiadas vezes, é apenas a assinatura no recibo de uma representação que não sentimos nossa.

A pergunta não é se a democracia sobrevive — porque o rótulo "democracia" pode sobreviver a quase tudo. A pergunta séria é se, dentro desse rótulo, nascerá um dia uma cidadania digna desse nome: gente que não tenha medo de pensar, de discordar, de rasgar narrativas confortáveis e de exigir mais do que uma liberdade de superfície.

Epílogo: entre a lucidez e a resignação

Quando escrevo que Portugal pode repetir outros cinquenta anos desta enternecedora "democracia", não o faço por gosto em ser pessimista, mas por respeito pela verdade que os olhos teimam em mostrar. A lucidez dói, mas é o único antídoto contra a anestesia colectiva.

Talvez um dia, algures entre um comentário distraído nas redes sociais e um momento de silêncio honesto consigo mesmo, cada um descubra que a cidadania não é um botão que se carrega de quatro em quatro anos, mas uma postura diária de insubmissão ao óbvio e ao confortável.

Escrito por Francisco Gonçalves, cidadão teimosamente inconformado com a mediocridade mansa. Em co-autoria conceptual com Augustus Veritas Lumen, que insiste em lembrar-nos que democracia sem cidadãos é apenas cenografia política com luzes baratas.
🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
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