O Fisco Salazarento da Democracia: Culpado Até Provar o Contrário

BOX DE FACTOS
- O contribuinte comum é tratado como suspeito por defeito: primeiro paga, depois que prove.
- O ónus da prova foi, na prática, invertido para quem menos poder tem.
- Os grandes interesses económicos beneficiam de um sistema lento, opaco e complacente.
- Sobrevive, em pleno século XXI, uma cultura fiscal salazarenta: Estado forte com os fracos e fraco com os fortes.
- Sem um novo contrato fiscal, a democracia continua a servir de verniz a um regime profundamente desigual.
O Fisco Salazarento da Democracia:
Culpado Até Provar o Contrário
Em Portugal, o Estado fiscal aprendeu a arte mais perversa do poder: fazer do contribuinte um suspeito profissional e do rico um inocente permanente. A herança de Salazar não está nos retratos nas paredes, está no modo como o sistema trata quem trabalha e protege quem manda.
1. Um Estado que desconfia de quem trabalha
Há países em que o Estado olha para o cidadão como parceiro. Em Portugal, o Estado olha para o contribuinte como potencial infractor. O ponto de partida não é a confiança, é a suspeita. Quando a carta das Finanças chega, não vem como informação, vem como ameaça subtil, quase sempre envolta em linguagem opaca e prazos curtos, como quem diz: "pague primeiro, explique depois".
O drama é que isto já nem choca. O contribuinte comum habituou-se a viver em estado de humilhação fiscal. Aprende, desde cedo, que não tem direito à dúvida, nem à falha, nem ao erro humano compreensível. Errou num campo? Não percebeu uma norma obscura? O problema é dele. O Estado não se assume como serviço; assume-se como máquina de cobrança medieval, com a delicadeza de um rolo compressor.
2. O ónus da prova, virado de cabeça para baixo
Na teoria, num Estado de direito, quem acusa é que tem de provar. Na prática fiscal portuguesa, o que vigora é uma mutação silenciosa desta regra: o contribuinte é tratado como culpado até provar a sua inocência. É ele que tem de revistar anos de papéis, facturas já amarelecidas, declarações antigas, cruzar sistemas diferentes, tudo para demonstrar que não tentou enganar o Estado.
O Estado, esse, não tem de provar quase nada. Basta-lhe emitir uma liquidação "presuntiva", usar fórmulas automáticas, algoritmos de suspeita, cruzamentos imperfeitos de dados. Se houver erro, paciência: que o contribuinte reclame, apresente requerimentos, abra processos, contrate contabilistas e advogados, perca horas na fila e anos de vida em ansiedade. Para o cidadão comum, o ónus da prova é uma montanha; para o Estado, um mero parágrafo padrão.
3. A democracia com cheiro a Salazar
Dizem-nos que vivemos em democracia há quase meio século. Mas há perfumes que não passam com a mudança de regime. O modo como o Estado lida com o povo cheira, demasiadas vezes, a gabinete do Estado Novo: distância, superioridade, ameaça e paternalismo. O contribuinte é o filho menor, irresponsável, que precisa de ser vigiado e castigado.
A herança salazarenta não está apenas nas velhas leis que ninguém revogou; está na mentalidade que atravessa governos de todas as cores. Mantém-se o velho princípio: Estado autoritário para baixo, submisso para cima. Quem tem pouco, é apertado até ao último cêntimo e penhorado sem apelo. Quem tem muito, contrata equipas de advogados, faz planeamento "criativo", espalha sociedades por offshores e paraísos fiscais, e de repente tudo se torna "complexo", "difícil de provar", "dependente de interpretações".
Passaram-se cinco décadas, mudaram-se bandeiras e discursos, mas a arquitectura profunda permaneceu: um sistema desenhado para disciplinar o povo e absolver as elites.
4. As quadrilhas legais e o teatro da igualdade
As verdadeiras quadrilhas do nosso tempo não andam de cara tapada, não assaltam bancos de caçadeira na mão. Andam de fato engomado, circulam entre gabinetes, escritórios de advogados, consultoras e ministérios. Não roubam com violência directa; roubam com astúcia legislativa, regulatória e fiscal. Transformam buracos na lei em auto-estradas para a fuga ao imposto, erguem estruturas opacas de papel e de ecrã, onde o dinheiro escorrega para onde o olhar do Fisco não chega, finge, ou tem mesmo medo, e não consegue chegar. - Veja-se só o caso recente do IMI das barragens da EDP!
Para o pequeno contribuinte, não há "optimização"; há dívida. Para as grandes fortunas, não há "burla"; há "planeamento". Para quem trabalha por conta de outrem, o imposto é retido na fonte, sem apelo nem agravo. Para quem lucra milhões, a conta verdadeira chega, quando chega, depois de anos de recursos, prescrições e esquecimentos muito oportunos.
E, no meio disto, repete-se o refrão hipócrita da "igualdade perante a lei". Igualdade? Uma ficção conveniente, útil para discursos de 25 de Abril e campanhas eleitorais, enquanto o país real se arrasta numa desigualdade fiscal que é, em si mesma, uma forma de violência.
5. O povo que prova tudo, o poder que não prova nada
O retrato é simples e brutal: o povo tem de provar tudo, o poder quase nada. O pequeno comerciante tem de provar cada troco, cada factura, cada movimento. O reformado tem de explicar um reembolso, uma pequena herança, uma poupança antiga. O trabalhador dependente é esquadrinhado quando tenta deduzir uns euros em despesas de saúde ou educação.
Já o político de carreira, o gestor de topo, o amigo certo no lugar certo, esses só são verdadeiramente incomodados se o escândalo rebentar no jornal. E mesmo assim, o ónus da prova inverte-se outra vez: de súbito, passa a ser o Ministério Público, com meios limitados e pressões por todos os lados, a ter de demonstrar, com detalhe microscópico, cada trajecto de cada euro que desapareceu em offshores, consultadorias e adjudicações duvidosas.
O resultado é conhecido: para muitos dos de cima, a justiça chega tarde, mal e porcamente – ou nunca chega. O relógio da prescrição é o melhor advogado das quadrilhas respeitáveis. Já para os de baixo, a máquina fiscal é rápida, automática, implacável. Em nome da "eficiência", penhora salários, contas e casas com a mesma frieza com que um algoritmo apaga linhas num ecrã.
6. Um novo contrato fiscal ou a continuação da humilhação
Não basta indignar-nos. É preciso dizer claramente o que está em causa: uma democracia que mantém um modelo fiscal salazarento na relação com o povo é uma democracia amputada. Pode ter eleições, partidos, debates televisivos e slogans coloridos; mas enquanto o contribuinte comum for tratado como súbdito suspeito, não como cidadão soberano, o regime continuará a ser, no essencial, um sistema de dominação.
Um novo contrato fiscal exige três rupturas claras: primeiro, recuperar o princípio civilizacional de que é o Estado que tem de provar o que acusa; segundo, simplificar a lei para que o cidadão a possa compreender sem doutoramentos; terceiro, virar finalmente a mira da fiscalização para os grandes esquemas, em vez de a concentrar nos pequenos remendos da sobrevivência diária.
Enquanto isso não acontecer, o país continuará a ser aquilo que já é: um laboratório perfeito de injustiça organizada, onde o medo da carta das Finanças é uma pedagogia silenciosa de submissão. E onde, ano após ano, o povo paga a factura inteira de um banquete a que nunca se sentou.
Talvez um dia, quando alguém olhar para trás, veja neste tempo aquilo que ele verdadeiramente é: a longa cauda de um regime que nunca chegou a ser totalmente enterrado. Nesse dia, talvez o contribuinte deixe de ser réu automático e passe, enfim, a ser aquilo que a Constituição prometeu e o sistema nunca cumpriu: cidadão plenamente digno, senhor dos seus direitos, respeitado pelo Estado que diz representá-lo.
Escrito por Francisco Gonçalves em co-autoria com Augustus Veritas Lumen,
na esperança teimosa de um país em que o ónus da prova deixe de ser instrumento de opressão,
e passe a ser fundamento de verdadeira justiça para todos os cidadãos.