BOX DE FACTOS

  • Funcionários do fisco e da segurança social recebem bónus associados à cobrança de dívidas.
  • Os incentivos financeiros deslocam o foco da justiça para o volume de execução.
  • O contribuinte torna-se alvo de caça, não cidadão de pleno direito.
  • As grandes evasões fiscais continuam protegidas por estruturas jurídicas e opacidade.
  • A lógica do Estado social cede lugar a um Estado predador que vive da fragilidade dos mais fracos.

O Estado Predador:
Bónus de Caça ao Contribuinte

Quando o Estado paga bónus para cobrar dívidas, deixa de ser árbitro e transforma-se em caçador. A partir desse momento, o contribuinte deixa de ser cidadão e passa a ser presa. O resto é retórica sobre "justiça fiscal".

1. Do serviço público à comissão de cobrança

A ideia de função pública nasceu, em teoria, para garantir que certos serviços essenciais não seriam capturados pela lógica do lucro imediato. Saúde, educação, segurança social, fiscalidade: tudo isto deveria ser território da justiça, não do comércio. Porém, quando se introduzem bónus agressivos pela cobrança de dívidas, o que era serviço público converte-se numa espécie de call center de cobrança automatizada, com metas mensais e ranking de desempenho. Um autêntico Estado Medieval, que é predador apenas para com os fracos.

O funcionário deixa de ser servidor do interesse geral e passa a viver sob a chantagem do objectivo: cobrar mais, executar mais, penhorar mais. O que conta já não é perceber se a dívida é justa, se houve erro, se há miséria ou desespero do lado de lá. O que conta é a linha do relatório: percentagem de recuperação, produtividade, "performance". No limite, o drama humano torna-se ruído estatístico.

2. O contribuinte como presa, o Estado como caçador

A linguagem não engana: fala-se em "detectar dívida", "apertar devedores", "recuperar activos". Em nenhum momento se escuta a palavra fundamental: pessoa. Há famílias que falharam um pagamento porque escolheram comprar comida, há pequenos negócios que escorregaram na corda bamba de impostos e taxas, há reformados que se perdem no labirinto de declarações e cruzamentos automáticos.

Mas para o Estado predador, isso é detalhe irrelevante. O contribuinte torna-se alvo num sistema de pontaria: quanto mais fácil de atingir, melhor. Quem tem salário fixo, conta bancária transparente e casa em seu nome é presa ideal. Um algoritmo detecta a dívida, outro dispara a penhora, um terceiro actualiza a estatística de sucesso. No fim, alguém recebe um bónus pelo "bom trabalho".

3. Bónus de rapina: quando a injustiça é premiada

Há incentivos que melhoram o mundo: bónus por resolver processos com equidade, por corrigir erros do Estado, por ajudar contribuintes a regularizar-se sem cair na miséria. Mas não é disso que falamos. Falamos de bónus ligados directamente ao valor cobrado, à quantidade de execuções concluídas, à ferocidade da máquina. É o equivalente moral a pagar mais ao polícia que passa mais multas, mesmo que metade delas sejam discutíveis.

Este tipo de incentivo cria um conflito de interesses brutal: quanto mais dura for a actuação, quanto menos margem de diálogo, quanto menos empatia houver, maior a probabilidade de a meta ser atingida. O que deveria ser uma decisão ponderada transforma-se numa corrida cega à cobrança. A justiça deixa de ser critério; o critério passa a ser o prémio ao fim do mês.

4. Os grandes intocáveis e a caça miúda

E aqui a perversão atinge o seu auge. Porque estes bónus raramente, ou mesmo nunca, se constroem à volta das grandes evasões fiscais, dos esquemas internacionais, das teias de offshores, dos grupos económicos que desaparecem no nevoeiro jurídico. Esses casos são complexos, exigem anos de investigação, equipas especializadas, coragem política. Não dão bónus rápidos.

Quem paga a conta dos incentivos são sempre os mesmos: o pequeno empresário, o trabalhador dependente, o reformado, o desempregado que não conseguiu pagar uma contribuição. A máquina estatal descobre, com imensa eficiência, o devedor sem poder. Já o milionário com exército de advogados continua a negociar, a litigar, a adiar, até que a prescrição seja, uma vez mais, o seu melhor investimento.

5. A erosão silenciosa da confiança

Uma democracia não se destrói apenas com golpes de Estado ou ditadores de farda. Também se corrói por dentro, devagar, quando o cidadão deixa de acreditar que o Estado joga limpo. Quando um contribuinte percebe que um funcionário é premiado por o tratar como número de cobrança, a confiança evapora-se. Não há contrato social que resista a esta percepção: o Estado deixou de ser casa comum e passou a ser empresa de cobrança com monopólio da força.

Aos poucos, instala-se uma cultura de medo e resignação. As pessoas pagam não porque acreditam na justiça do sistema, mas porque temem as consequências de o desafiar. O medo substitui a cidadania. E um povo com medo é tudo menos livre.

6. Um Estado que vive do desespero não é Estado social

Não basta colar a etiqueta de "Estado social" numa máquina que vive à custa do desespero dos mais frágeis. Um verdadeiro Estado social seria aquele que distingue entre o grande fraudador e o pequeno devedor, que entende a diferença entre a má-fé calculada e a falha de quem tenta sobreviver. Seria aquele que investe a sério na detecção de esquemas milionários e não em arrastar famílias para a penhora por dívidas quase simbólicas.

Um Estado que paga bónus pela caça à dívida pequena não é social, é predador. Alimenta-se da carne dos que não têm defesa, enquanto brinda discretamente com os que sabem navegar o labirinto legal e político. Em vez de corrector das desigualdades, transforma-se no seu amplificador mais eficiente.

Talvez o primeiro passo para sair desta selva seja dizer as coisas pelo nome: chamar Estado predador a um Estado que remunera a rapina e ignora a justiça. O segundo passo será exigir que a função pública volte a ser isso mesmo: serviço à comunidade, e não sistema de bónus à custa da angústia alheia. Até lá, continuaremos a viver num país onde o contribuinte é a caça e o orçamento do Estado é a festa de quem aprendeu a caçar com luvas de veludo e dentes de aço.

Escrito por Francisco Gonçalves em co-autoria com Augustus Veritas Lumen, em memória de todos os que foram tratados como números de cobrança por um Estado que se esqueceu de ser casa de cidadãos e passou a viver como predador.

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