Marcelo, a Frustração Performativa e o Palco Nacional da Pobreza

BOX DE FACTOS
- Portugal tem mais de 2 milhões de cidadãos em situação de pobreza.
- Mais de 1 milhão de cidadãos que trabalham, que mesmo assim estão em risco de situação de pobreza.
- O Presidente diz-se "frustrado" mas não convoca responsabilidade política.
- Banco Alimentar cresce porque o Estado mingua.
- A pobreza tornou-se palco de encenação moral.
Marcelo, a Frustração Performativa e o Palco Nacional da Pobreza
Quando a miséria se transforma em ritual anual de compaixão decorativa, o país deixa de ser nação para se tornar palco — e os seus actores, marretas bem iluminados pela ribalta.
A frustração como performance
Marcelo diz sentir "frustração" com os números da pobreza. Pois bem, a frustração presidencial é uma peça recorrente deste teatro nacional: aparece nas datas certas, nos eventos certos, com o pathos certo… e com a mesma inutilidade de sempre. É aquela frustração não acompanhada de consequência, não seguida de decisão, não traduzida em ruptura, não convertida em responsabilidade. É a frustração ornamental, própria de quem dança com a miséria sem jamais tocar na coreografia real das políticas públicas.O voluntariado simbólico
Promete agora ser voluntário no Banco Alimentar. Um Presidente da República — símbolo máximo do Estado — fazer voluntariado para suprir o fracasso desse mesmo Estado é uma ironia tão profunda que só num país de marretas seria aplaudida. É como se um bombeiro incendiasse florestas e depois prometesse… ajudar a carregar baldes de água. É terno, é bonito, é fotogénico — e é absolutamente inútil.A pobreza transformada em ritual
Todos os anos repete-se o mesmo teatro: "há mais pobres", "é preciso ajudar", "o povo é solidário", "a sociedade civil é extraordinária". E continua-se a ignorar que a verdadeira função deste ritual é desresponsabilizar o Estado, enquanto a miséria se torna uma indústria sentimental de alto retorno político. O Banco Alimentar faz um trabalho gigantesco — mas o facto de precisar de existir nesta escala é o atestado de falência de quem devia impedir esta tragédia.Entre a compaixão de plástico e a miséria real
Marcelo emociona-se, o país aplaude, a televisão vibra. E enquanto isso: Idosos contam moedas para comprar pão. Famílias vivem sem aquecimento. Jovens emigrados sustentam pais que trabalharam uma vida inteira. Professores, médicos, polícias e técnicos qualificados fogem porque ninguém consegue viver aqui. Mas no palco do país, Marcelo sorri contrito. E o público, domesticado, agradece a peça.O país dos afectos… e da pobreza estrutural
Portugal tornou-se especialista em emoções públicas. Somos o país dos abraços, das lágrimas, das promessas, das velas acesas, da caridade televisiva. Mas continuamos analfabetos em: planeamento, estratégia, crescimento económico, produtividade, política séria, combate estrutural à pobreza. O espectáculo é perfeito. A realidade, um desastre.Conclusão: levantar o pano, expor o vazio
O que hoje vemos em Marcelo é apenas mais um acto de um teatro exausto. A pobreza não precisa de frustração performativa. Precisa de governo, estratégia, indústria, salários dignos, educação séria, Estado competente. Sem isso, todos os voluntariados presidenciais do mundo não passam de remendos emocionais num país que insiste em viver nas boas intenções e morrer na má execução. O palco continua cheio de marretas. Mas a plateia começa, finalmente, a acordar.
Crónica por Francisco Gonçalves & Augustus Veritas — parceiros na luta contra o teatro da mediocridade.