BOX DE FACTOS

  • Empresas que receberam milhões de euros em fundos europeus avançam com despedimentos colectivos.
  • Polopiqué, grupo têxtil com sede em Santo Tirso, reestrutura-se, fecha unidades e despede centenas de trabalhadores.
  • Entre PT2020 e PT2030, a empresa recebeu vários milhões em apoios públicos para "competitividade" e "modernização".
  • No terreno, a "modernização" traduz-se em reestruturação, insolvências e 274 pessoas empurradas para o desemprego.
  • O procedimento é "legal", repetem calmamente as autoridades. A pergunta que ninguém quer enfrentar é: será legítimo?

Empresários de Subsídio: Milhões em Fundos, Centenas no Desemprego

Em Portugal inventou-se um modelo genial: privatizam-se os lucros, socializam-se os prejuízos e baptiza-se o resultado de "reestruturação". No meio, ficam 274 vidas empurradas para a fila do desemprego, depois de milhões em fundos públicos terem sido delicadamente encaixados.

O milagre da competitividade subsidiada

Chamam-lhes empresários de sucesso, casos de estudo, exemplos de "resiliência" e "inovação". Na prática, muitos destes modelos assentam em dois pilares simples: fundos europeus a jorros e mão-de-obra barata, descartável, pronta a ser substituída à primeira vaga de "reestruturação" ou ao primeiro relatório de contas malcheiroso.

A história repete-se com uma previsibilidade insultuosa: anos de apoios públicos, projectos em powerpoint cheios de palavreado sobre sustentabilidade, digitalização, economia verde, "clusters" e "ecossistemas". Depois, quando a conjuntura aperta ou a gestão falha, a solução é sempre a mesma: fecha-se, declara-se insolvência, reestrutura-se, renegoceia-se a dívida. Quem paga a factura? Não são, certamente, os quadros que aparecem nas fotografias oficiais.

Fundos que alimentam betão, máquinas e silêncio

Milhões de euros em fundos comunitários foram canalizados para "aumentar a competitividade" e "salvaguardar o emprego". Assim está escrito nos programas e nas candidaturas aprovadas. Mas, no fim do dia, o que vemos é um padrão: máquinas adquiridas com dinheiro público, linhas de produção montadas com incentivos, lucros privados enquanto o ciclo corre bem… e depois, quando o vento muda, trabalhadores lançados borda fora como carga a mais.

O truque é conhecido: enquanto há apoios, há planos estratégicos, fotos com ministros, visitas guiadas à fábrica, discursos inflamados sobre a "indústria nacional". Quando chega o momento de devolver à sociedade o investimento feito, a porta fecha-se, os portões trancam, e ninguém sabe muito bem quem responde pelos compromissos assumidos.

Legal? Provavelmente, sim. Imoral? Profundamente. E é aqui que o Estado se demite: não por falta de leis, mas por falta de coluna vertebral.

274 números. 274 vidas.

Diz a notícia: "reforma estrutural", "plano de reestruturação", "concentração nas unidades mais rentáveis". No meio dos parágrafos de linguagem assepticamente económica, lá aparece o número: 274 trabalhadores. É assim que o sistema os vê — algarismos alinhados numa folha de cálculo, ajustáveis com uma tecla delete.

Mas por detrás de cada número há casas com prestações ao banco, filhos a estudar, pais idosos dependentes, gastos de saúde, vidas inteiras organizadas à volta de um salário. Quando estes "empresários de mérito" decidem que já não precisam de tanta gente, não despedem apenas trabalhadores: empurram famílias inteiras para a corda bamba.

A máquina contabilística regista "redução de custos". A realidade regista aumento de angústia, precariedade e ressentimento social. É assim que se semeia, silenciosamente, a desagregação de um país.

Capitalismo de compadrio com selo europeu

O problema não é apenas desta ou daquela empresa. É de um sistema inteiro montado para premiar quem sabe navegar a burocracia dos fundos, não necessariamente quem sabe criar riqueza sustentável e emprego decente.

Em vez de um capitalismo produtivo, baseado em conhecimento, tecnologia e visão de longo prazo, temos um capitalismo de compadrio, onde os negócios nascem e morrem ao sabor dos concursos públicos, dos programas comunitários e das modas de Bruxelas. Hoje é "transição energética", ontem foi "inovação", amanhã será "resiliência digital". O rótulo muda, a lógica permanece: dinheiro público para risco privado, risco zero para quem decide e lucros blindados enquanto a música toca.

Quando a factura chega, é o mesmo Estado que financiou o investimento que depois terá de pagar subsídios de desemprego, programas de "requalificação" e apoios sociais para as vítimas do sistema. Um círculo perfeito de irracionalidade, empurrado com o selo da legalidade e a bênção dos relatórios europeus.

Empreender com o dinheiro dos outros

Em Portugal inventou-se uma definição muito peculiar de "empreendedor": alguém que arrisca pouco, se possível com capitais alheios, de preferência públicos; que constrói o seu império em cima de salários baixos; e que, quando algo corre mal, está sempre pronto a reinventar-se… desde que o Estado e a União Europeia garantam o almofadão financeiro.

Estes empresários de subsídio adoram os discursos sobre liberdade económica, mas vivem agarrados ao tubo de oxigénio dos incentivos. Falam de "competitividade internacional", mas a sua verdadeira especialidade é preencher formulários complexos e conhecer o corredor certo dos ministérios. São ferozmente liberais com a vida dos trabalhadores e profundamente estatistas com o seu próprio risco.

Epílogo: empresários, sim — mas de quê?

Quando assistimos a empresas que recebem milhões em fundos públicos e, logo a seguir, despejam centenas de pessoas para a borda do sistema, a pergunta deixa de ser económica e passa a ser ética: que tipo de tecido empresarial estamos a cultivar?

Talvez um dia Portugal descubra que um país sério precisa de outra espécie de empresários: os que arriscam o próprio conforto, os que partilham ganhos com quem constrói valor, os que pagam salários dignos antes de exibirem lucros obscenos, os que não tratam seres humanos como variáveis descartáveis de uma folha de Excel.

Até lá, continuaremos a ver manchetes sobre "reestruturações inevitáveis" e reportagens com trabalhadores à porta das fábricas encerradas. O modelo não está em crise. O modelo é a crise.

Escrito por Francisco Gonçalves, que recusa aceitar como "normal" um país onde a coragem é exigida apenas aos fracos. Em co-autoria conceptual com Augustus Veritas Lumen, cúmplice na denúncia deste capitalismo de subsídio e desperdício humano.
🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
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