Quando o SNS é de primeira para uns e de corredor para outros

BOX DE FACTOS
- O Presidente da República sentiu dores numa deslocação a norte e foi internado no Hospital de São João, no Porto.
- Diagnóstico: hérnia encarcerada – uma verdadeira urgência cirúrgica, resolvida com prontidão exemplar.
- Marcelo Rebelo de Sousa foi operado rapidamente, com evolução favorável e alta em poucos dias.
- À saída, elogiou a "função inestimável" do Serviço Nacional de Saúde e dos seus profissionais.
- Milhares de outros utentes vivem, em paralelo, a realidade de listas de espera, adiamentos e urgências saturadas.
O Presidente operado, o povo à espera
Há imagens que valem por um tratado de ciência política. O Presidente da República, de bata hospitalar, rodeado por médicos e gestores do Hospital de São João, sorrisos de missão cumprida, declara perante as câmaras: o Serviço Nacional de Saúde é uma conquista inestimável da democracia. E, por instantes, parece que Portugal funciona.
Do ponto de vista clínico, nada a apontar – bem pelo contrário. Uma hérnia encarcerada é uma urgência séria, que exige intervenção rápida para evitar complicações graves. Foi isso que o SNS fez: diagnosticou depressa, operou depressa, acompanhou com rigor, deu alta em segurança. Como deve ser. O problema não está na medicina feita ao Presidente. O problema está em tudo o que ela revela sobre o país que temos.
Duas filas invisíveis: uma para o poder, outra para o povo
Oficialmente, a triagem é igual para todos. Na lei, na Constituição, nos discursos de ocasião, a prioridade é a gravidade clínica e nada mais. Na prática, porém, há uma segunda triagem – silenciosa, não escrita, estrutural: a do estatuto, do cargo, do impacto mediático que um atraso teria.
Quando a dor é de um Presidente, há sempre vaga, equipa, atenção, cautela. O sistema afina-se, acelera, concentra recursos, mobiliza o que for preciso. O relógio do SNS transforma-se em cronómetro suíço.
Quando a dor é de um anónimo, o mesmo sistema – com os mesmos profissionais exaustos – passa, muitas vezes, a relógio avariado: meses à espera por consulta de especialidade, cirurgias sucessivamente adiadas, exames que se arrastam, urgências que rebentam pelas costuras com macas alinhadas em fila, como se o corredor fosse uma extensão natural da enfermaria.
Não se trata de culpar a equipa médica que tratou o Presidente – fez exactamente o que deve ser feito em qualquer caso semelhante. Trata-se, isso sim, de perguntar porque é que esta eficiência cirúrgica se tornou excepção visível em vez de regra silenciosa.
O elogio ao SNS e a ironia brutal da realidade
Ao agradecer publicamente ao hospital e aos seus profissionais, Marcelo Rebelo de Sousa usou palavras justas. O SNS é, de facto, uma das maiores criações da democracia portuguesa. Sem ele, a maioria dos portugueses estaria entregue às seguradoras, ao crédito e à caridade.
Mas há uma ironia que se crava como agulha: enquanto o chefe de Estado exalta a "função inestimável" do SNS, milhares de utentes assistem à cena com uma pergunta muda na garganta: onde estava esse relógio perfeito quando foi a minha vez?
Onde estava a urgência quando alguém esperou dois anos por uma consulta de cardiologia? Onde estava a prontidão quando uma cirurgia considerada "não prioritária" é adiada pela terceira vez? Onde estava a grande conquista da democracia quando um doente oncológico se vê a saltar entre hospitais, papéis e telefonemas em busca de um exame que não chega?
O elogio presidencial, ainda que sincero, ressoa em muitos ouvidos como banda sonora de um filme que não corresponde à vida real. E é aqui que começa o verdadeiro diagnóstico: o do país, não o da hérnia.
SNS: sustentado por heróis, sabotado por décadas de gestão medíocre
O que funcionou bem no caso do Presidente não foi a burocracia, nem a visão estratégica, nem os sucessivos "planos de emergência" anunciados em conferências de imprensa. O que funcionou foi o de sempre: a competência teimosa de médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos, gente que insiste em fazer bem, mesmo num sistema maltratado.
O SNS tem sido violentado por décadas de subfinanciamento crónico, decisões erráticas, reformas pela metade, dependência crescente de prestadores privados e fuga de profissionais para fora do país ou para o sector lucrativo. O discurso é o da "defesa do SNS"; a prática é a da erosão silenciosa, corte a corte, turno a turno, concurso que não abre, vaga que não se preenche.
O Presidente entra, é tratado e sai em segurança – e ainda bem. Mas, ao fundo do corredor, permanecem as macas, os utentes que não aparecem nas televisões, os horários arrancados à vida familiar, os profissionais que já esgotaram todas as reservas de boa vontade.
É essa distância, entre o cenário mediático e a realidade sem câmara, que transforma um episódio clínico bem resolvido num espelho implacável da desigualdade estrutural.
A igualdade não é um slogan clínico, é uma decisão política
A doença não pergunta profissão, salário ou notoriedade. O corpo humano não sabe quem é Presidente, quem é caixa de supermercado, quem é reformado a contar moedas. Mas o sistema – esse organismo abstracto feito de decisões orçamentais, prioridades políticas e agendas escondidas – sabe muito bem onde estão os "casos sensíveis".
Quando se diz que o SNS é universal, geral e tendencialmente gratuito, há uma promessa que não pode ser apenas poética: a de que o tempo de resposta não dependerá do nome que consta no cartão do cidadão.
Se o Presidente teve, como deve ter, resposta imediata e exemplar, então a consequência lógica seria clara: fazer do caso Marcelo a bitola de referência para todos os cidadãos, e não apenas uma vitrine circunstancial da boa saúde de um sistema doente.
Isso implicaria escolhas duras: reforçar investimento, reorganizar serviços, enfrentar interesses instalados, integrar de forma inteligente o sector privado sem transformar o SNS num mero filtro de doentes complexos e pobres. Implicaria tratar a saúde como pilar de soberania e dignidade social – e não como rubrica chata de um orçamento qualquer.
O Presidente como doente ilustre e o povo como estatística
Há um valor pedagógico em ver o Presidente ser tratado num hospital público: é um sinal de que o SNS, apesar de tudo, ainda é espaço de confiança institucional. É saudável que o chefe de Estado não fuja para uma clínica de luxo discreta, escondida no silêncio das facturas que poucos podem pagar.
Mas seria ainda mais pedagógico vê-lo usar este episódio como ponto de viragem: fazer da sua própria experiência de doente ilustre o ponto de partida para uma intervenção firme, constante, incómoda, em defesa de mudanças reais no sistema. Não apenas elogios, mas exigência.
Porque, no fim, o que separa o Presidente do cidadão comum não é a diferença de dor, mas a diferença de consequência: para um, a hérnia foi episódio clínico resolvido; para muitos outros, episódios semelhantes conduzem a agravos, demoras, sequelas evitáveis.
A linha que separa a dignidade plena do cidadão da mera sobrevivência burocrática é feita deste tipo de detalhes: quem entra pela porta da frente, com corredor aberto, e quem fica preso na sala de espera da eternidade administrativa.
Um país mede-se pela forma como trata a dor anónima
No dia em que a hérnia do Presidente foi operada, quantas outras dores ficaram suspensas em silêncio? Quantos exames foram adiados por falta de equipamento? Quantas consultas foram remarcadas porque o médico se demitiu, emigrou ou simplesmente não aguenta mais turnos de guerra?
Um país não se mede pela rapidez com que trata o seu chefe de Estado – essa rapidez é obrigatória, quase óbvia. Mede-se, sim, pela forma como protege a dor anónima, quotidiana, sem holofotes. Pela forma como trata o cidadão sem nome sonante, mas com o mesmo direito constitucional à saúde.
Enquanto essa diferença persistir, cada episódio de sucesso clínico com protagonista ilustre será também um lembrete amargo: o SNS é de todos no papel, mas continua a ser de primeira para alguns e de resistência para a maioria.
O Presidente já saiu do hospital. O povo, esse, continua na sala de espera – à espera de que alguém leve a sério, não a sua hérnia, mas a ruptura profunda de um sistema que não pode viver eternamente da heroicidade dos seus profissionais e da resignação dos seus doentes.
A verdadeira alta clínica do SNS não virá de um comunicado de imprensa, mas do dia em que a frase "funcionou para o Presidente" seja indistinguível de "funcionou para todos".
Texto de Aletheia Veritas em coautoria com Francisco Gonçalves, publicado em parceria com o projecto Fragmentos do Caos.
Esta crónica integra a série contínua de reflexão crítica sobre o estado da democracia portuguesa, o serviço público e a dignidade dos cidadãos na era da mediocridade institucional.