BOX DE FACTOS

  • Ursula von der Leyen negociou um mega-contrato de vacinas com a Pfizer através de mensagens SMS com o CEO da empresa.
  • A Comissão Europeia recusou divulgar essas mensagens, alegando que não eram "documentos oficiais" e que já não existiam.
  • O Tribunal da União Europeia considerou que a Comissão violou as regras de transparência ao ocultar essas comunicações.
  • Existem queixas criminais relacionadas com o processo de contratação das vacinas.
  • Von der Leyen tem defendido o uso de poderes de emergência e engenharia jurídica para contornar vetos de Estados-membros em temas como a guerra na Ucrânia e os activos russos.

Bruxelas por SMS: A Europa Governada por Mensagens Apagadas

No alto da pirâmide europeia, a política deixou de ser feita em ágoras e passou a circular em mensagens que se apagam com um gesto do polegar. A presidência de Ursula von der Leyen é o retrato de uma Europa que decide por SMS e só presta contas quando um tribunal lhe bate à porta.

Pfizergate: contratos de milhares de milhões em modo chat privado

No auge da pandemia, enquanto milhões de europeus estavam fechados em casa, a presidente da Comissão Europeia trocava mensagens directas com o CEO da Pfizer para negociar um dos maiores contratos públicos de sempre. O palco não foi o Parlamento, nem o Conselho, nem sequer uma sala de reuniões formal. Foi o ecrã de um telemóvel: SMS, mensagens curtas, rápidas, sem actas, sem registo sério, sem escrutínio.

Quando jornalistas e o New York Times pediram acesso às mensagens, a Comissão encolheu os ombros. Disse que os SMS não eram "documentos oficiais", que não tinham sido guardados, que a transparência tinha limites tecnológicos e burocráticos. A desculpa era tão frágil que o Tribunal da União Europeia acabou por considerar que a instituição violou as próprias regras de acesso à informação. A Europa descobriu, pela porta do tribunal, que o seu destino fora decidido num chat de telemóvel – e que alguém tinha carregado no botão de apagar.

Transparência à la carte: o que se vê, o que se apaga

O caso não é apenas um detalhe administrativo. É um sintoma. No topo da máquina europeia instalou-se a ideia de que a transparência é opcional, negociável, ajustável à conveniência política do momento. O que embaraça, apaga-se; o que favorece, divulga-se em conferências de imprensa coreografadas, com bandeiras bem alinhadas e discursos cheios de "valores europeus".

Em paralelo, surgem queixas criminais e investigações sobre a forma como o contrato com a Pfizer foi conduzido. As perguntas são simples e pesadas: foi respeitado o interesse público? Foram cumpridas as regras de contratação? Houve favorecimento? O cidadão comum raramente ouvirá respostas claras. Em vez disso, recebe comunicados vagos, relatórios atrasados e a confortável frase-tampão: "o procedimento foi legal".

Poderes de emergência: quando a excepção se torna regime

Não bastavam os SMS desaparecidos. Von der Leyen transformou a palavra "emergência" na chave-mestra para abrir portas que, em teoria, deveriam permanecer trancadas sem debate sério. Do financiamento da guerra na Ucrânia com base em activos russos congelados, à tentativa de contornar vetos de Estados-membros recorrendo ao artigo 122.º dos Tratados, tudo parece caber dentro da mesma lógica: se a política se complica, chama-se a técnica; se a técnica não chega, invoca-se a emergência.

A questão não é ignorar a gravidade da guerra ou da crise energética. A questão é outra: até que ponto podemos aceitar que, em nome da urgência, se atropelem procedimentos democráticos, se torçam tratados, se ignorem parlamentos nacionais? Uma União que se reclama de Estado de direito não deveria normalizar a governação por atalhos jurídicos e decretos de ocasião.

O passado que não passa: sombras no Ministério da Defesa alemão

Antes de chegar a Bruxelas, Ursula von der Leyen deixou na Alemanha um rasto de investigações e suspeitas ligadas à contratação de consultoras externas quando era ministra da Defesa. Contratos milionários, processos opacos, auditorias que levantaram dúvidas sobre a forma como o dinheiro público era distribuído. Nada disto impediu a sua ascensão à presidência da Comissão. Pelo contrário: foi quase um trampolim.

O padrão é familiar: nada de condenações formais, tudo dentro da fronteira confortável do "não provado". Mas, ao mesmo tempo, uma nuvem constante de dúvidas sobre a forma como o poder é exercido e financiado. E, no entanto, as grandes famílias políticas europeias continuam a segurá-la, como se nada se passasse, porque derrubar uma presidente implicaria olhar de frente para as falhas estruturais da própria União.

Europa pós-democrática: quando o cidadão é figurante

A biografia política de von der Leyen é, no fundo, o espelho de uma Europa pós-democrática: instituições complexas, decisões tomadas em círculos restritos, linguagem tecnocrática que afasta o comum dos mortais, e uma cultura de responsabilidade diluída em comités, conselhos, grupos de trabalho e "task forces".

O cidadão entra em cena de cinco em cinco anos, quando é chamado a votar em listas partidárias que quase ninguém lê. Depois é gentilmente convidado a regressar ao sofá, enquanto a política verdadeira se faz em salas fechadas, videoconferências discretas e, agora, também em threads de mensagens instantâneas. Se algo corre mal, a culpa é sempre difusa – tanto que acaba por nãobser de ninguém.

Epílogo: apagar mensagens, acender cidadania

Não é preciso ceder às teorias da conspiração para ver que algo está profundamente errado numa União Europeia em que o destino de centenas de milhões de pessoas é negociado por SMS com empresas farmacêuticas, onde poderes de emergência se tornam rotina e onde o princípio da transparência se aplica apenas quando é conveniente.

O verdadeiro escândalo não é só o que Ursula von der Leyen fez ou deixou de fazer. O verdadeiro escândalo é termos aceite, quase sem resistência, que este é o modo "normal" de funcionamento da Europa. Enquanto os cidadãos permanecerem reduzidos a figurantes,ba política continuará a ser escrita em ecrãs que não vemos, em mensagens que não lemos e em decisões que apenas conhecemos quando já estão tomadas.

Um dia, talvez, a Europa perceba que não se pode construir um projecto civilizacional com base em mensagens apagadas. Até lá, resta-nos a lucidez teimosa de quem recusa ser governado em modo silencioso.

Escrito por Francisco Gonçalves, europeu de coração mas não de obediência cega,bque insiste em perguntar quem escreve as mensagens que não vemos. Em co-autoria conceptual com Augustus Veritas Lumen, cúmplice assumido na denúncia desta Europa que se quer democrática, mas prefere ser governada por SMS.
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