BOX DE FACTOS

  • Em 1 de Dezembro de 1640, um grupo de conjurados depôs o poder filipino e proclamou D. João IV, iniciando a Guerra da Restauração.
  • O 1 de Dezembro tornou-se símbolo civil de independência política e afirmação de soberania nacional.
  • Quase quatro séculos depois, Portugal mantém a independência formal, mas vive novas dependências económicas, tecnológicas e financeiras.
  • A data convida a um exame de consciência colectivo: que tipo de independência defendemos hoje?

1 de Dezembro de 1640: a independência que fizemos e a que falta cumprir

Em 1640, Portugal rompeu a submissão a Madrid e reclamou o direito de decidir o seu destino. Em 2025, o país exibe bandeira e hino, mas arrasta dependências económicas, tecnológicas e morais que esvaziam, por dentro, a palavra independência. Celebrar o 1 de Dezembro é menos repetir um feito passado e mais perguntar, sem medo: de que é que ainda não nos libertámos?

1. O que foi, realmente, o 1 de Dezembro de 1640?

Entre 1580 e 1640, Portugal viveu sob a União Ibérica. Na forma, mantinha leis, fronteiras e império; na substância, a soberania estava ferida e o reino arrastava-se ao sabor das guerras, impostos e interesses da coroa de Castela. O país pagava a factura de conflitos que não eram sentidos como seus, perdia posições no ultramar e via os seus recursos drenados para prioridades alheias.

A tensão acumulou-se em revoltas locais e descontentamento generalizado, até que, na manhã de 1 de Dezembro de 1640, um grupo de conjurados entrou no Paço da Ribeira, em Lisboa. Prenderam a representante de Madrid, a duquesa de Mântua, e executaram o secretário Miguel de Vasconcelos, símbolo humano da submissão. Pouco depois, D. João, duque de Bragança, foi aclamado rei com o título de D. João IV. Era o início da Restauração.

A independência não se consolidou num dia; consumiu quase três décadas de guerra, negociações e sacrifícios, até ao reconhecimento formal pela monarquia espanhola. A data que hoje assinalamos condensa, num símbolo, esse processo longo e doloroso: a escolha de ser país, e não província.

2. A independência de ontem e as dependências de hoje

Quase quatro séculos depois, a geografia política mudou, mas a pergunta essencial permanece: que tipo de independência temos, de facto, em 2025? O Estado português tem governo próprio, Constituição, representação internacional, assento nas instituições europeias. Mas, quando olhamos para a arquitectura real do poder e da economia, a independência revela-se cheia de fissuras.

Dependemos de capital estrangeiro para financiar dívida e bancos, de tecnologia importada para quase toda a cadeia produtiva de valor, de fundos europeus para mascarar atrasos que raramente se enfrentam de raiz. Dependemos de um modelo económico assente em serviços de baixa produtividade, turismo sazonal e salários baixos, que fragiliza famílias e empurra talentos para a emigração. A soberania formal convive com uma subalternidade concreta.

Em 1640, a tutela era visível, encarnada numa dinastia estrangeira. Em 2025, as novas tutelas são mais discretas: contratos opacos, condicionamentos financeiros, dependência tecnológica, compromissos assumidos em nome de um "realismo" que, demasiadas vezes, serve mais os instalados do que o interesse colectivo.

3. Soberania não é só bandeira: é produção, conhecimento e dignidade

Soberania não se mede apenas pela existência de um parlamento, de um hino e de uma bandeira hasteada. Soberania verdadeira exige capacidade de decidir e executar um projecto próprio, sem depender permanentemente da esmola financeira, da tecnologia alheia e da indulgência dos credores.

Há uma soberania produtiva, quando o país é capaz de gerar valor, ciência e indústria que não se limitam a tarefas subalternas na cadeia global. Há uma soberania tecnológica, quando domina infra-estruturas críticas, dados, conhecimento e plataformas em vez de ser apenas cliente cativo de poucos gigantes estrangeiros. E há uma soberania social, quando a dignidade mínima da existência – casa, trabalho, saúde, educação – não é privilégio de minorias, mas condição elementar de cidadania.

A celebração de 1640 torna-se vazia se aceitarmos como inevitável que Portugal seja um país de salários de sobrevivência, serviços públicos exaustos e elites políticas mais focadas em táctica partidária do que em estratégia nacional. A bandeira pode ser independente; o quotidiano, nem tanto.

4. 1640 como espelho do presente

Se retirarmos o folclore patrioteiro, o 1 de Dezembro fala-nos, acima de tudo, de três coisas concretas: capacidade de ruptura, visão de longo prazo e disposição para o sacrifício colectivo. Os conjurados de 1640 decidiram que o preço de continuar submisso era superior ao risco de se levantar. A coroa de Bragança representava, bem ou mal, a hipótese de um destino desenhado em Lisboa, não em Madrid.

Hoje, a ruptura que falta não é contra um rei estrangeiro, mas contra uma cultura política que naturaliza a mediocridade, tolera a corrupção como "mal menor" e aceita um lugar cómodo na cauda da Europa. Falta visão de longo prazo numa sociedade que vive em ciclos curtos: ciclos eleitorais, ciclos de fundos, ciclos de indignação fugaz nas redes sociais. E falta sacrifício partilhado: pede-se esforço aos mesmos de sempre, enquanto o aparelho de privilégios permanece intacto.

Celebrar 1640 num país que convive com pobreza estrutural, serviços públicos à beira da ruptura e fuga de cérebros é, inevitavelmente, um acto ambíguo: por um lado, honra-se o passado; por outro, expõe-se a distância entre a coragem de outrora e a hesitação de hoje.

5. Uma nova Restauração: não de fronteiras, mas de carácter

Não precisamos de um novo 1 de Dezembro com espadas no Terreiro do Paço. O século XXI não pede quarteladas; pede reforma profunda do carácter colectivo. Uma Restauração contemporânea teria de acontecer na educação, na economia real, na ética pública e na cultura cívica.

Na educação, formando cidadãos capazes de pensar, criar e questionar, em vez de apenas reproduzir programas. Na economia, apostando em sectores de alto valor, ciência aplicada e inovação séria, em vez de depender quase exclusivamente de turismo e serviços desqualificados. Na ética pública, tratando a corrupção como ruptura de contrato social, e não como folclore inevitável. Na cultura cívica, recuperando a ideia de que política é participação diária e não apenas voto ocasional ou desabafo amargo.

A independência que falta não se conquista com tratados, mas com escolhas: o país que aceitamos ser, o nível de exigência que colocamos em quem governa e em nós próprios, o grau de tolerância que concedemos à incompetência e ao favorecimento. É uma restauração interior, silenciosa, mas decisiva.

6. 1 de Dezembro: feriado ou exame de consciência?

Se o 1 de Dezembro se limitar a cerimónias protocolares, discursos mornos e peças apressadas de telejornal, será apenas mais um feriado em piloto automático. Mas, se o tomarmos como dia de exame de consciência, volta a ser data viva: um espelho colocado à frente do país a perguntar se estamos à altura do legado que celebramos.

Estamos a honrar 1640 quando aceitamos que muitos milhares de portugueses vivam no limiar da pobreza, mesmo trabalhando? Quando renunciamos a ambicionar um lugar de vanguarda na ciência, na tecnologia, na cultura? Quando normalizamos escândalos sucessivos como se fossem ruído de fundo inevitável?

Talvez o maior insulto aos restauradores não seja esquecê-los, mas lembrar o seu gesto sem qualquer vontade de fazer, à nossa escala, o mesmo: romper com as dependências que hoje nos prendem, tão eficazmente como outrora o fizeram tratados, imposições e exércitos.

No fundo, o 1 de Dezembro recorda-nos que a História não acabou em 1640. Pelo contrário: deixou-nos uma frase em aberto. Falta decidir se queremos terminar essa frase com acomodação ou com coragem.

Autor: Francisco Gonçalves para FragmentosdoCaos, que escreve porque acredita que Portugal merece um futuro melhor para todos os portugueses.

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