Rui Rio no que melhor sabe fazer em política

BOX DE FACTOS
- Rui Rio acusa o Ministério Público de ter cometido um "crime gravíssimo" no caso das escutas onde surge o nome de António Costa.
- A declaração é feita em entrevista televisiva, a propósito da falha no envio de parte das escutas ao Supremo Tribunal de Justiça.
- O ex-líder do PSD reitera a sua desconfiança estrutural em relação ao Ministério Público e à Procuradoria-Geral da República.
- O caso alimenta a perceção pública de que política e justiça vivem numa guerra permanente de narrativas e culpas cruzadas.
- Perde-se, mais uma vez, a oportunidade de discutir reformas sérias e transparentes da justiça, em vez de indignação de ocasião.
Rui Rio no que melhor sabe fazer em política
Entre processos com falhas, escutas incompletas e explicações em modo comunicado oficial, Rui Rio regressa ao palco onde se sente em casa: o da indignação moral em directo na televisão.
"Rui Rio, o paladino da justiça… desde que seja ele a segurá-la pela trela."
O momento perfeito para regressar ao palco
Bastou um erro grave do Ministério Público no envio de escutas, num processo já de si tóxico, para que a velha figura do moralista irreconciliável regressasse ao ecrã. Rui Rio, ex-líder do PSD, entra em cena com o léxico pesado de sempre: fala em "crime gravíssimo", declara ter "muita dificuldade em acreditar no Ministério Público" e coloca, mais uma vez, a própria legitimidade da justiça sob suspeita perante o país.
O enredo é conhecido: a falha do Ministério Público não é apenas um erro institucional que exige explicações, responsabilidade e correção. Torna-se sobretudo combustível político para relançar uma narrativa: a de que o sistema de justiça é estruturalmente falho, enviesado, quase inimputável – e que ele, Rui Rio, há muito vinha avisando.
Indignação televisiva: o ofício discreto da velha política
Há uma ironia dolorosa neste teatro: um político que passou décadas no coração do sistema – câmaras municipais, parlamento, liderança partidária - apresenta-se agora como observador quase externo, um comentador indignado que fala sobre o Sistema como se nunca tivesse participado nele.
A sua especialidade, neste novo ciclo, não é propor um desenho concreto de reforma da justiça, com prazos, modelos comparados, mecanismos de controlo, transparência e responsabilização. O que domina é outra arte, bem mais cómoda: a da indignação sem consequência, a frase forte em prime-time, o soundbite que faz manchete e circula nas redes sociais.
Em vez de discutir como garantir que as escutas são bem tratadas, auditadas e enviadas sem falhas; quem deve responder disciplinarmente; e que regras devem ser reforçadas, ficamos a saber apenas que o Ministério Público é, mais uma vez, suspeito de tudo. Uma espécie de saco de pancada nacional que todos os partidos usam consoante a conveniência do dia.
Quando todos apontam o dedo a todos (e ninguém responde por nada)
O país habituou-se a um jogo de espelhos: quando a política falha, culpa-se a justiça; quando a justiça falha, culpa-se a justiça e a comunicação social; quando ambos falham, culpa-se um segredo de justiça que nunca é segredo para ninguém.
A declaração de Rui Rio encaixa como luva neste padrão: em vez de contribuir para uma clarificação – o que correu mal, quem errou, que consequências disciplinares haverá, que alterações processuais se propõem – o discurso alimenta a desconfiança difusa. O cidadão comum ouve "crime gravíssimo" e conclui, legitimamente, que o sistema está podre até ao osso. E se está tudo podre, ninguém é verdadeiramente responsável por nada – nem quem acusou mal, nem quem investigou mal, nem quem governou mal.
A desconfiança torna-se crónica, mas funcional para o jogo partidário: cada falha da justiça é aproveitada como munição política. Fecha-se o círculo vicioso: o sistema está desacreditado, logo é fácil usá-lo como inimigo útil; e como está desacreditado, continua sem reformas sérias, porque os mesmos que berram contra ele nunca se comprometem com mudanças concretas.
Reforma da justiça: a ausência que grita
Fala-se em "crime gravíssimo", mas quase ninguém fala em:
- Modelos de auditoria independente aos processos sensíveis.
- Revisão séria das regras de escutas e transcrições, com registos electrónicos rastreáveis.
- Responsabilidade disciplinar clara em caso de falha grave, sem corporativismos.
- Reformulação do segredo de justiça, para o proteger onde é necessário e evitar fugas selectivas para jornalismo de filtragem.
- Calendário e metas para uma reforma da justiça discutida em debate público, e não apenas em estúdios de comentadores.
Nada disto rende manchetes tão rápidas como uma acusação sonora ao Ministério Público. Exige trabalho, estudo comparado, coragem política, ruptura com interesses instalados – em suma, aquilo que raramente cabe numa entrevista de dez minutos.
O paladino que precisa da trela
O auto-retrato implícito é o de um paladino solitário da justiça, alguém que "sempre disse" o que agora se confirma. Mas a frase que melhor resume o momento não é a de Rui Rio – é a do observador crítico "Rui Rio, o paladino da justiça… desde que seja ele a segurá-la pela trela."
Porque o que vemos não é uma defesa desinteressada da justiça; é a tentativa de cavalgar a crise da justiça para reposicionar o próprio ego político. A justiça aparece como animal indomável, perigoso, que precisa de ser controlado – e quem melhor para segurar a trela do que quem se apresenta como o único lúcido na sala?
Epílogo: entre a justiça e o espectáculo
O problema não é criticar o Ministério Público. Num Estado de direito, nenhuma instituição está acima da crítica nem fora da responsabilidade. O problema é transformar cada falha grave em mero espectáculo político, em vez de a usar como ponto de partida para uma reforma séria.
Enquanto o país assiste, cansado, a mais uma ronda de indignação televisiva, a justiça continua lenta, opaca, permeável a fugas selectivas e erros inadmissíveis. E a política continua a fazer aquilo em que se especializou: apontar o dedo sem nunca estender a mão para mudar o sistema.
Assinado: Francisco Gonçalves
Série "Contra o Teatro da Mediocridade" — publicado em parceria com o projecto Fragmentos do Caos.