BOX DE FACTOS

  • Origem: Canção de intervenção de José Jorge Letria, início dos anos 70, em plena ditadura.
  • Ideia central: O choque entre o que fomos e o que nos tornámos – individual e colectivamente.
  • Contexto histórico: Do antes do 25 de Abril à ilusão democrática e ao conforto partidário do pós-revolução.
  • Actualidade: Meio século depois, a pergunta permanece: quem nos viu e quem nos vê numa democracia capturada por aparelhos, clientelas e carreiras políticas.
  • Esta crónica: Usa o espírito da canção como espelho cruel da realidade portuguesa em 2025.

Quem Nos Viu e Quem Nos Vê: Da Canção de Intervenção à Democracia de Plástico

Há um verso antigo que não envelhece: pergunta, em tom de espanto e melancolia, como é possível que um povo que sonhou a liberdade aceite hoje viver numa democracia de plástico, cheia de slogans reciclados, onde a coragem é rara e a mediocridade é, discretamente, política de Estado.

1. Quando a canção era risco e não decoração

No início dos anos 70, cantar contra o regime não era um exercício de estilo nem um truque de marketing: era, muitas vezes, um gesto de risco real. Havia censura, fichas na polícia política, telefonemas vigiados, cartas abertas a ferro em água quente. Nesse tempo, uma canção de intervenção não servia para ganhar festivais; servia para lembrar a quem ainda não tinha desistido que não estava sozinho. Cada verso era um bilhete clandestino passado de mão em mão.

Quando José Jorge Letria devolveu ao país a pergunta de quem nos viu e quem nos vê, apontava a fratura entre a dignidade desejada e a realidade vivida: a distância entre a fome de justiça e o chão pegajoso da repressão, da pobreza, do medo. A canção era espelho e denúncia, mas também promessa discreta de que, um dia, a história poderia mudar de curso.

2. Abril: a alvorada que não vinha com manual de instruções

Depois, os cravos nas bocas das espingardas, as portas das prisões a abrir, o povo a ocupar as ruas como quem ocupa finalmente o próprio corpo. Durante algum tempo, o país pareceu um laboratório de futuro: assembleias, plenários, jornais a nascer por toda a parte, poetas a falar em voz alta, operários a discutir economia, estudantes a devorar filosofia como quem descobre a água.

Mas a liberdade não traz manual de instruções. E, enquanto uns se entregavam ao trabalho duro de reinventar um país, outros começaram a perceber que, naquela espuma de mudança, se abria espaço para outra coisa: carreiras, cargos, benesses, um novo tipo de poder com cheiro a velho, mas verniz de modernidade. A revolução abriu portas; a esperteza instalou-se à socapa nos corredores.

3. Quem nos viu a lutar e quem nos vê a gerir

Muitos daqueles que, um dia, arriscaram tudo para que o país pudesse respirar, viram-se, pouco depois, sentados em cadeiras estofadas, rodeados de dossiers, selos e circulares internas. Alguns continuaram decentes, fiéis à palavra dada; outros descobriram que o poder tem um conforto morno que embala, anestesia e desculpa quase tudo.

É aqui que o antigo verso ganha nova acidez: quem nos viu a erguer punhos e bandeiras, quem nos viu presos, exilados, perseguidos, talvez já não nos reconheça quando nos senta à mesa do orçamento, do concurso público conveniente, da nomeação discreta. A distância entre o militante e o gestor de regime não é medida em quilómetros: mede-se em concessões silenciosas, em indignação arquivada, em princípios colocados numa gaveta com chave.

4. A democracia de plástico: partidos-empresa, cidadãos-cliente

Meio século depois, chamamos "democracia" a um sistema em que, durante a campanha, os partidos prometem mundos e fundos, e, no dia seguinte às eleições, entregam ao país um folheto de supermercado: cortes, taxinhas, obras faraónicas, negócios mal explicados, nomeações para amigos e ex-assessores. O voto transformou-se em contrato de adesão a um tarifário político que ninguém lê até ao fim.

Os partidos, muitos deles, comportam-se como empresas: recrutam aprendizes de político em idade precoce, treinam-nos em jotas, promovem os mais dóceis, empurram para fora os que pensam demasiado. Em vez de cidadãos livres, formam-se gestores de narrativa. Fala-se de povo, mas a prioridade é o aparelho. Fala-se de justiça social, mas a prioridade é a próxima eleição. Fala-se de pátria, mas a prioridade é o lugar na lista.

Nesta democracia de plástico, a canção de intervenção converteu-se em fundo musical para documentários nostálgicos, e a palavra "liberdade" aparece, muitas vezes, como decoração em discursos que, na prática, legitimam a continuidade da desigualdade, da injustiça e da pobreza estrutural.

5. Quem nos vê hoje: um país cansado, mas ainda lúcido

Quem nos vê hoje vê um país onde uma parte da população trabalha a tempo inteiro para não sair da pobreza, onde a juventude qualificada emigra, onde os serviços públicos agonizam em corredores de espera, onde a habitação se tornou lotaria e a velhice, muitas vezes, um corredor estreito entre a solidão e a caridade. Vê um povo cansado, sim; mas não necessariamente cego.

A lucidez está aí, espalhada em conversas de café, em textos teimosos, em pequenos grupos que ainda se recusam a aceitar a normalização da miséria moral e material. Não enche praças todos os dias, não tem horário marcado no telejornal, mas existe. É essa lucidez que ouve a velha canção e percebe que a pergunta se deslocou: já não se dirige apenas ao passado, fala também deste presente híbrido, onde a revolta tem medo de sair à rua, mas recusa morrer em silêncio.

6. Entre a memória e o futuro: o que fazemos com a vergonha

Há países que sobrevivem sem memória, à força de amnésia voluntária e propaganda diária. Mas nenhum país suporta, por muito tempo, viver sem vergonha. A vergonha de ver crianças em casas geladas enquanto se discutem cativações; a vergonha de aceitar listas de espera fatais enquanto se salvam bancos falidos; a vergonha de conviver, com naturalidade, com um léxico de "casos" e "suspeitas" que nunca parecem chegar a lado nenhum.

A pergunta antiga torna-se teste de stress moral: se quem nos viu não nos reconhece, se o país que fomos e o país que somos parecem duas fotografias de estranhos, então alguma coisa falhou — não apenas nos governantes, mas na cultura cívica que fomos permitindo que se atrofiásse. A canção aponta para a política, mas também para cada um de nós: onde estivemos, enquanto tudo isto acontecia?

7. Reescrever o refrão: de quem nos viu a quem queremos ser

Não basta repetir versos de memória. O que faz falta é reescrever, na prática, o refrão. Trocar o cinismo por exigência, a resignação por organização, o desabafo de café por participação consciente. Não para glorificar partidos ou líderes messiânicos, mas para recuperar a ideia simples e quase revolucionária de que o Estado existe para servir pessoas, e não o contrário.

Talvez o futuro comece no momento em que a pergunta se inverte: não apenas "quem nos viu e quem nos vê", mas "quem queremos ser para que, um dia, alguém olhe para trás e diga: foi ali que deixaram de se conformar". Quando a canção deixar de ser apenas memória e se transformar, de novo, em faísca.

Epílogo: a canção como espelho que recusamos partir

Continuamos, tantos anos depois, diante do mesmo espelho. Podemos tentar emoldurá-lo com nostalgia, pendurá-lo numa parede de museu, usá-lo como banda sonora para documentários sobre "os tempos heróicos". Mas, por mais que o maquilhemos, o espelho insiste em devolver a imagem crua do país que somos hoje.

Talvez a forma mais honesta de homenagear as canções de intervenção não seja repeti-las em coro, mas aceitarmos a ferida que elas abrem. Enquanto houver quem, ao ouvi-las, sinta qualquer coisa a mexer por dentro — uma mistura de raiva, ternura e vergonha — ainda não está tudo perdido. Porque, nesse instante, a democracia de plástico estala um pouco, e por essa fenda entra uma luz antiga: a possibilidade, sempre adiada mas nunca morta, de fazermos deste país algo que mereça, um dia, ser visto sem que tenhamos de desviar os olhos.

Crónica de Francisco Gonçalves, em parceria com Augustus Veritas Lumen, para Fragmentos do Caos.

Entre a canção de intervenção e o grito silencioso de um país cansado, permanece a teimosia de quem ainda recusa confundir liberdade com rotina e democracia com espectáculo.

"Até ao Pescoço" e a geração que cantou contra a noite

Quando José Jorge Letria grava "Até ao Pescoço", no início dos anos 70, Portugal ainda vive mergulhado numa ditadura longa, pobre e vigilante. Cantar não é apenas entreter: é arriscar. Cada verso pode ser lido por ouvidos atentos da censura, cada metáfora pode valer um processo, uma proibição, um "desaparecimento" na rádio.

Ao lado de outros nomes da época, Letria integra a chamada canção de intervenção, um movimento em que a música se torna lugar de resistência. Não há redes sociais, não há canais de notícias 24/7: há discos, concertos semiclandestinos, cassetes que passam de mão em mão, rádios estrangeiras sintonizadas às escondidas. É nesse contexto que nascem temas como "Quem nos viu e quem nos vê", que questionam a cobardia, a hipocrisia social e a pequena burguesia acomodada.

O disco é mais do que um conjunto de canções: é um retrato de geração. Fala de gente "até ao pescoço" em problemas, em censura, em injustiça, mas também até ao pescoço em esperança. É a banda sonora de quem recusa aceitar que o país é condenação e não escolha.

Hoje, quando essas músicas regressam como memória, lembram-nos que houve um tempo em que a palavra liberdade não era slogan em cartaz partidário, mas desejo físico, urgente, pago com prisões, exílio e silêncio imposto. Ouvir esse disco em 2025 é perguntar, com um certo embaraço: o que fizemos nós com a coragem que herdámos?


🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
👁️ Esta página foi visitada ... vezes.