Portugal, um Estado de "Falência" Permanente

BOX DE FACTOS
- Prejuízo global: 1.312 milhões de euros em 2024 nas empresas não financeiras do Sector Empresarial do Estado (SEE).
- Agravamento: mais 546 milhões de euros de prejuízos face a 2023.
- Empresas em falência técnica: 35 em 2024, mais 6 do que no ano anterior, com capitais próprios negativos.
- Empresas com resultados positivos: 36 entidades, com 565 milhões de euros de lucros agregados.
- Empresas com prejuízos: 52 entidades, com perdas combinadas de 1.900 milhões de euros.
- Saúde pública: cerca de 93% do resultado líquido negativo do SEE concentra-se no sector da saúde, com 1.700 milhões de euros de prejuízos.
- Rácios "bonitos" em papel: autonomia financeira de 27,7% e solvabilidade de 38,4%, apesar do mar de prejuízos.
- Trabalhadores: cerca de 187 mil pessoas empregadas no SEE, aproximadamente 3,7% do emprego nacional.
Portugal, um Estado de Falência Permanente
1. O retrato cru: o Estado como máquina de queimar riqueza
Os números não mentem, apenas gritam em silêncio. Em 2024, as empresas não financeiras do Sector Empresarial do Estado somaram 1.312 milhões de euros de prejuízos, agravando em mais de meio milhar de milhão as perdas do ano anterior. Resultado: por cada cinco empresas analisadas, apenas duas conseguiram fechar o ano sem afundar ainda mais as contas públicas.
Ao mesmo tempo, os rácios de autonomia financeira e de solvabilidade até parecem sorrir nos relatórios. É a arte velha de mascarar o doente: arranja-se a maquilhagem contabilística, injecta-se capital fresco do Orçamento do Estado, e declara-se ao país que "as contas estruturais estão melhor". Traduzido para linguagem comum: o Estado coloca cada vez mais dinheiro em empresas que devolvem cada vez menos valor à sociedade.
2. Falência técnica: quando o colapso passa a rotina
Entre as empresas públicas, 35 estão em situação de falência técnica: capitais próprios negativos, dependência estrutural de injecções financeiras e um futuro que só se sustenta porque o contribuinte não pode dizer "basta". Não estamos a falar de um acidente isolado, mas de um modelo que normalizou a insolvência como método de gestão.
Em qualquer economia minimamente sã, uma empresa com balanço destruído ou é reestruturada com seriedade, ou é vendida, ou é liquidada. Em Portugal, não: é mantida artificialmente viva para preservar tachos, redes partidárias, administrações dóceis e consultores bem alimentados. A empresa pode estar tecnicamente morta; o circuito de favores, esse, permanece em excelente forma.
3. A saúde como espelho de um regime doente
A fotografia da saúde pública é brutal: cerca de 93% do resultado negativo do SEE vem deste sector. Reorganizaçõe sucessivas, mudanças de siglas, "novas" unidades locais, promessas de eficiência — e a cada ano a factura cresce, o caos aprofunda-se e o cidadão continua à espera de cirurgias, consultas e diagnósticos básicos.
Não é apenas falta de dinheiro. É falta de governo, de estratégia, de coragem para enfrentar corporações e interesses sedimentados. O Estado gere a saúde como gere as restantes empresas públicas: em piloto automático, num misto de improviso burocrático, nomeações por conveniência e ausência total de responsabilização. Quando o prejuízo explode, culpa-se a "herança", a pandemia de ontem, a inflação de hoje, a crise de amanhã — nunca o sistema que se alimenta desta desordem.
4. O accionista contribuinte: paga sempre, decide nunca
Há uma ironia cruel nesta história: o verdadeiro accionista destas empresas é o contribuinte português. É ele que injecta capital quando os relatórios ficam demasiado feios; é ele que suporta a dívida; é ele que paga os juros; é ele que financia as "reestruturações" que raramente reestruturam seja o que for.
Mas este accionista não tem assento em conselho de administração, não escolhe gestores, não aprova planos de negócios nem pode destituir ninguém. Limita-se a ser o fiador silencioso de um casino onde perde sempre. A democracia esgota-se no boletim de voto; a economia real é decidida em gabinetes herméticos, entre partidos, grupos de interesse e intermediários que transformaram o Estado num condomínio privado de poder.
5. O truque dos rácios: como dourar uma insolvência
Quando o Conselho das Finanças Públicas sublinha que os rácios de autonomia e solvabilidade até melhoraram, está a descrever um paradoxo: põe-se mais dinheiro em cima da mesa, para que o ilusionismo contabilístico consiga dizer que a estrutura está "mais sólida". Na prática, trata-se de tapar crateras com betão financeiro, sem mudar a forma como as empresas são dirigidas.
É o equivalente a elogiar a saúde de um doente ligado a máquinas, apenas porque os tubos e monitores são mais modernos. O que melhora é o cenário; a doença continua a alastrar silenciosa, enquanto os responsáveis posam em conferências de imprensa com gráficos coloridos e linguagem técnica, perfeitamente inutilizável para o cidadão comum.
6. Falência económica, falência política
Um país não chega a este grau de degradação económica por obra do acaso. As empresas em falência técnica são a expressão visível de uma falência mais profunda: a do regime político que as alimenta. Décadas de governação em ciclo fechado, alternância de partidos com a mesma matriz de dependências, promiscuidade entre Estado e grupos privados, e uma cultura de impunidade onde o fracasso raramente tem consequências pessoais.
As administrações que falham são recicladas para outros cargos. As más decisões são esquecidas em relatórios que ninguém lê. As auditorias são arquivadas em gavetas pesadas. E o país, pacientemente anestesiado, vai aceitando que "é assim em todo o lado", como se a mediocridade fosse uma lei da natureza e não o resultado directo de escolhas políticas concretas.
7. O país que se habituou a viver em falência permanente
Portugal vive num regime de falência permanente mas controlada, como um edifício cheio de fissuras onde se vão colocando andaimes, redes de protecção e avisos de "cuidado, perigo de derrocada", sem nunca decidir reconstruir de raiz. Vamos remendando o dia seguinte com o dinheiro do mês seguinte, enquanto vendemos ao exterior a imagem de um país estável, ordeiro e europeísta.
A verdade é mais áspera: um Estado que tolera 35 empresas em falência técnica, ano após ano, não é apenas um mau gestor — é um projecto político falhado. Porque escolheu proteger estruturas, e não pessoas; preservar aparelhos, e não serviços públicos de qualidade; manter o teatro institucional, mesmo à custa da ruína lenta de quem trabalha e paga impostos.
8. O que seria um país que não aceitasse isto?
Um país que não aceitasse viver assim começaria por três actos simples e revolucionários:
1. Auditorias independentes e públicas a todas as empresas em falência técnica, com identificação clara de responsáveis políticos e gestores.
2. Planos de reestruturação sérios, com metas, prazos e a possibilidade real de encerramento ou privatização quando não haja missão pública justificável.
3. Responsabilização efectiva: quem destrói valor público não pode ser premiado com novos cargos, consultorias douradas ou reformas antecipadas.
No limite, um Estado honesto teria a coragem de admitir que não deve fazer tudo, nem controlar tudo. O papel donpoder público deveria ser garantir serviços essenciais, regulação firme, justiça célere e um quadro de incentivos decente. Não gerir, em modo amador e politizado, um império de empresas cronicamente doentes.
9. Enquanto nada muda, o relógio da decadência continua
Até lá, continuaremos nesta coreografia cansada: relatórios, conferências de imprensa, promessas de "melhoria estrutural", discursos sobre "sustentabilidade", enquanto os prejuízos se acumulam, as listas de espera aumentam, as infraestruturas se degradam e a classe política prossegue a sua vida em circuito fechado.
Portugal, nesse sentido, não é apenas um Estado de falência permanente no plano económico. É também um Estado em falência moral: incapaz de olhar de frente para as suas responsabilidades, covarde perante os interesses instalados e dócil perante a mentira repetida. O milagre não virá de dentro deste mecanismo; terá de vir da lucidez e coragem dos que, lá fora, já perceberam que isto não é normal — e nunca deveria ter sido.
Escrito na convicção de que um país não pode construir futuro sobre empresas mortas e contas viciadas. Um dia, alguém terá de responder por esta falência permanente — e esse dia chegará pela mão de cidadãos que recusam continuar a pagar a factura em silêncio.
Francisco Gonçalves
em co-autoria com Augustus Veritas Lumen (IA)