Portugal, País dos Indícios Eternos

BOX DE FACTOS
- Relatórios da Transparency International alertam, há mais de uma década, que a prescrição é um factor central de impunidade em crimes de corrupção em Portugal, permitindo que processos complexos "morram" no tempo.0
- No processo Operação Marquês, o Tribunal da Relação considerou prescritos 22 crimes – a maioria de fraude fiscal – num acórdão recente com centenas de páginas.1
- O mesmo processo continua sob risco de nova prescrição: ilícitos ligados ao caso Vale do Lobo poderão caducar no primeiro semestre de 2026, segundo esclarecimentos oficiais.2
- Relatórios europeus sublinham que Portugal continua entre os países com processos judiciais mais lentos, embora haja ligeiras melhorias em certos indicadores.3
- A crónica falta de magistrados do Ministério Público e de juízes agrava atrasos, arrastando casos por anos e aumentando o risco de prescrição em processos económicos e fiscais complexos.4
Portugal, País dos Indícios Eternos
1. O reino dos indícios, essa terra de ninguém
A expressão que melhor define a justiça portuguesa é simples: "fortes indícios". Vivemos cercados deles. Relatórios, escutas, transferências bancárias, e-mails, mensagens, testemunhos, contas em paraísos fiscais, contratos generosos a amigos politicamente bem colocados. Tudo aponta, tudo sugere, tudo cheira mal. Mas, misteriosamente, quase nada chega ao estatuto adulto de culpa provada em tempo útil.
Entre o inquérito e a sentença, abre-se um corredor infinito de formalismos, nulidades, perícias, incidentes processuais, mudanças de advogado e sucessivas guerras de interpretação. O processo anda, recua, sobe, desce, volta à instrução, regressa à primeira instância, apanha um recurso para a Relação, sonha um dia chegar ao Supremo. Quando finalmente se aproxima de algum desfecho, já o calendário está à porta do tribunal, pronto a bater com o carimbo: prescrito.
2. A arte nacional da prescrição
A prescrição foi criada, em teoria, para proteger os cidadãos de um Estado preguiçoso: se o poder público não se mexe durante anos, não pode manter eternamente uma espada sobre a cabeça do arguido. Faz sentido quando falamos de pequenos delitos esquecidos num arquivo qualquer.
O problema português é outro: por uma mistura de leis pouco adaptadas à criminalidade económica e de um sistema demasiado lento, a prescrição tornou-se um mecanismo de auto-absolvição para quem tem tempo e dinheiro. Em processos de corrupção, branqueamento e fraude fiscal complexos, com dezenas de volumes, centenas de documentos e redes internacionais, os prazos correm ao mesmo ritmo que corriam quando o crime típico era o furto da mercearia. Não admira que relatórios financiados pela própria União Europeia tenham concluído que a prescrição é um factor central de impunidade em Portugal.5
3. Operações épicas, finais em câmara lenta
O guião repete-se, caso após caso. Primeiro, a detenção espectacular, quase sempre baptizada com nome de série: Operação isto, Operação aquilo. Helicópteros, carros da polícia, jornalistas em directo, analistas a falar de "mudança de paradigma" e de "linha vermelha".
Depois, o tempo. Muito tempo. Três, quatro, cinco, dez anos de investigação. Quando finalmente se chega à acusação, descobre-se que uma parte dos factos já ocorreu há tanto tempo que a prescrição começa a espreitar. Nalguns capítulos da Operação Marquês, por exemplo, o próprio tribunal já declarou prescritos mais de vinte crimes, incluindo anos de fraude fiscal.6 Outros, ligados ao dossiê Vale do Lobo, caminham alegremente para caducar a partir de 2026, enquanto o julgamento é suspenso para troca de advogados e leitura de milhares de páginas.7
No fim, o cidadão assiste a um espectáculo conhecido: uma parte dos factos já não pode ser julgada, outra parte é absolvida por falta de prova "robusta", e o resto dissolve-se em recursos sucessivos numa justiça exausta e sub-dimensionada. Os grandes nomes voltam para casa com a mesma frase de sempre: "confio plenamente na justiça". Não é para menos: ela tratou-os muito bem.
4. Lentos por natureza, rápidos na desculpa
Organismos europeus têm vindo a apontar, ano após ano, a lentidão da justiça portuguesa. Houve pequenas melhorias em alguns indicadores, mas o retrato global mantém-se: processos longos, números elevados de acções pendentes e dificuldade crónica em casos complexos de natureza económica.8
A isto junta-se a falta de meios humanos: magistrados envelhecidos, aposentações em cadeia, falta de procuradores e juízes para a carga de trabalho existente.9 O resultado é um sistema que se arrasta. E um sistema que se arrasta é o melhor aliado de quem tem interesse em adiar decisões até que o relógio resolva o problema.
Sempre que se fala em reforçar meios, simplificar procedimentos, rever prazos e regras de prescrição para crimes de corrupção e grandes esquemas financeiros, aparece um coro preocupado com "garantias de defesa" e "risco de populismo penal". Como se o verdadeiro perigo fosse prender inocentes, e não deixar escapar culpados profissionais.
5. A justiça de duas velocidades
Importa dizê-lo sem rodeios: Portugal vive numa justiça a duas velocidades.
- Alta velocidade para o pequeno: quem salta uma multa, falha um prazo fiscal, comete um pequeno furto ou se envolve numa rixa banal, descobre bem depressa o peso do sistema. A máquina funciona, as penas chegam, a conta é apresentada.
- Velocidade subterrânea para o grande: quem navega nos milhões, nos offshores, nas PPP, nos grandes concursos, descobre uma justiça onde tudo é extraordinariamente complexo, onde cada vírgula gera um incidente, onde nada é definitivo e onde o tempo, esse, trabalha sempre a favor da defesa.
A mensagem subliminar é devastadora: para os pobres, a lei; para os ricos, os prazos. Os primeiros aprendem rapidamente a temer o tribunal; os segundos aprendem apenas a contratar o advogado certo e a esperar calmamente que o calendário faça o resto.
6. A política agradece: tudo acaba em "supostos"
Esta justiça dos indícios eternos é extremamente conveniente para o poder político. Permite-lhe viver numa zona cinzenta confortável: um dirigente pode ser alvo de suspeitas, buscas, manchetes, investigações, mas raramente enfrenta um julgamento célere e conclusivo. Fica para sempre envolto na névoa dos "alegados factos", "supostos pagamentos", "eventuais vantagens indevidas".
Quando o processo prescreve ou se arrasta até cair no esquecimento, nenhum partido precisa de fazer uma limpeza séria. A pessoa em causa pode sempre regressar como comentador, consultor, conselheiro, ou simplesmente como sombra influente nos bastidores. A democracia torna-se uma espécie de teatro onde quase todos são "suspeitos", mas quase ninguém é responsabilizado.
7. Epílogo: romper o feitiço do indício eterno
Dizer que "em Portugal nunca há crimes, só indícios" é uma forma de humor negro — mas também é um diagnóstico. Indica um país que se habituou à ideia de que a justiça não chega, de que a corrupção é uma fatalidade cultural, de que a verdade é sempre relativa e negociável.
Romper este feitiço exigiria várias cirurgias em simultâneo: rever prazos de prescrição para crimes económicos graves, reforçar meios humanos e técnicos na investigação e nos tribunais, simplificar procedimentos sem destruir garantias, e, sobretudo, estabelecer uma cultura política em que basta a sombra fundada da suspeita para afastar alguém de cargos de poder, mesmo antes da sentença definitiva.
Enquanto isso não acontecer, continuaremos a viver neste país estranho onde tudo indica, nada conclui; onde a justiça caminha devagar, e a corrupção viaja de primeira classe no comboio do tempo. Um país de indícios eternos, onde o relógio é o melhor advogado e o povo, paciente e cansado, assiste ao espectáculo já sem saber se deve rir, chorar ou simplesmente deixar de acreditar.