Portugal na Penumbra: A Cultura do Favor como Arquitectura de Estado

A corrupção em Portugal tornou-se culturalmente normalizada, apesar de estruturalmente nociva. Este ensaio analisa a habituação colectiva, o sistema que a protege e a possibilidade real de ruptura.
A Normalização da Corrupção: O País que Aprendeu a Viver na Sombra
Há frases que dizem muito com quase nada. "A corrupção em Portugal é normal" é uma delas. Não porque seja verdadeira, mas porque exprime o estado emocional, social e ético de um país cansado, habituado e, sobretudo, domesticado. De tanto assistir, deixou de reagir. De tanto perceber, deixou de se espantar. De tanto perder, deixou de lutar.
Mas a corrupção não é normal.
Foi apenas transformada em hábito.
Portugal vive numa espécie de penumbra moral: luz suficiente para fingir transparência; sombra suficiente para esconder o essencial. É aí que prosperam intermediários, "consultores", favores cruzados, partidos como máquinas de empregos e um Estado que distribui oportunidades não pelo mérito, mas pela lealdade. O país indignado ao balcão torna-se estranhamente manso nas urnas.
1. O Mecanismo da Habituação
A corrupção instala-se quando o povo deixa de acreditar num Estado ético. Cada escândalo é recebido com um suspiro — nunca com uma ruptura. A indignação é episódica; a resignação é estrutural.
É como uma casa com infiltrações:
primeiro tentamos reparar; depois convivemos; por fim esquecemos que aquilo não deveria existir.
A psicologia chama-lhe normalização progressiva. A política portuguesa chama-lhe continuidade democrática.
2. O Sistema que se Protege a Si Mesmo
Nunca são casos isolados: é uma ecologia inteira. Um ecossistema de poder que se auto-regenera:
- partidos transformados em agências de emprego;
- empresas públicas como celeiros de compadrio;
- fundos, institutos e autarquias com carreiras feitas de lealdades internas;
- consultores que nada consultam;
- assessores que nada assessoram;
- um Estado que distribui favores em vez de políticas.
A corrupção portuguesa não precisa de espectacularidade. É doméstica, administrativa, silenciosa. Vive nos concursos à medida, nos processos que nunca avançam, nas promoções sem mérito e na opacidade orçamental. E vive, sobretudo, na impunidade.
3. A Grande Ferida Nacional
A corrupção não é apenas um crime económico — é um crime cultural. Corrói a confiança, o cimento invisível de qualquer nação funcional.
O trabalhador cumpre horários num país onde quem governa cumpre favores.
O estudante esforça-se num país onde se entra pela porta lateral.
O cidadão paga impostos num país onde o Estado desperdiça como se fosse rico.
Assim nasce o cinismo colectivo: uma geração que não acredita, outra que desistiu, e uma terceira que preserva vícios por medo do vazio que viria depois.
4. A Possibilidade da Ruptura
E, no entanto, há sempre a noite antes da madrugada.
As sociedades mudam quando uma minoria lúcida decide que já não aceita a regra da maioria adormecida. A Islândia provou-o. A história inteira provou-o.
A mudança começa na exigência radical: na cidadania que exige transparência, na cultura que prefere perder privilégios a perder consciência, e no país que decide que ser pequeno não é destino.
5. O País que Ainda Pode Renascer
A corrupção tornou-se metáfora perfeita da condição portuguesa: sabemos o que está errado, mas adiamos sempre a coragem de reescrever tudo.
A luz começa no inconformismo. A corrupção permanece normal apenas quando os espíritos livres se calam.
Portugal renascerá no exacto momento em que falarem — e se recusarem a parar.
Artigo autoria de 📖 Francisco Gonçalves