BOX DE FACTOS

  • O Governo anuncia um excedente público de mais de quatro mil milhões de euros até Outubro, em óptica de caixa.
  • Parte do "milagre" resulta de medidas temporárias em IRS e pensões, e de efeitos de calendário.
  • A receita fiscal sobe mais 2,4 mil milhões, com o IVA a render mais 1,7 mil milhões – sobretudo à custa do consumo.
  • A Segurança Social e as autarquias têm excedentes robustos, enquanto a Administração Central continua em défice.
  • A maquilhagem orçamental faz-se com jargão técnico, escolhas convenientes de métricas e muita gestão de percepção pública.

Manual prático de maquilhagem orçamental: como transformar impostos em excedentes épicos

Se é para mentir em relatórios oficiais, que seja com gráficos bem desenhados, selos ministeriais e comunicados cheios de palavras como "rigor", "excedente" e "contas certas". Este é um pequeno guia para perceber como se transforma a carteira dos contribuintes em epopeias orçamentais – sem nunca admitir o truque.

Todos os anos há um momento em que o Governo aparece, sério e compenetrado, a anunciar resultados luminosos das contas públicas. Este ano não foi diferente: excedente superior a quatro mil milhões de euros até Outubro, receita a crescer mais do que a despesa, Portugal no caminho da virtude orçamental. Pelo menos é essa a história que se conta em conferências de imprensa e relatórios cheios de tabelas.

Mas por trás dos números "históricos" existe uma arte antiga, finamente aperfeiçoada: a maquilhagem orçamental. Nada que seja, em rigor, mentira frontal – apenas uma combinação muito cuidadosa de métricas convenientes, medidas temporárias, jargão técnico e gestão de percepção. É assim que um país exausto acaba a aplaudir excedentes que foram extraídos, em boa parte, da sua própria pele.

1. Primeiro truque: escolher a métrica que dá mais jeito

O mesmo conjunto de contas públicas pode dar histórias muito diferentes consoante a lente escolhida. Em óptica de caixa e apenas até Outubro, temos um excedente gordo de milhares de milhões. Em contas nacionais para o ano inteiro, o excedente encolhe para uma percentagem modesta do PIB. E, na própria óptica de caixa anual, até pode surgir um défice.

O manual da boa maquilhagem diz o seguinte: fala-se sempre da métrica que tiver o número mais vistoso. Se "quatro mil milhões" soa mais impressionante do que "0,3% do PIB" ou "défice no fim do ano", então é esse o número que abre telejornais, discursos e entrevistas. O resto fica enterrado em notas de rodapé para quem tiver paciência de ler.

2. Misturar medidas temporárias com virtudes eternas

Uma parte significativa do brilho orçamental resulta de medidas extraordinárias: acertos de retenções na fonte de IRS, bónus pontuais em pensões, alterações de calendário em pagamentos e recebimentos. São decisões que fazem oscilar, para cima ou para baixo, os saldos de um determinado ano, mas que não dizem muito sobre a saúde estrutural das contas públicas.

A fórmula de comunicação é simples: misturar o efeito destas medidas temporárias com a ideia de competência duradoura. Em vez de dizer "este excedente reflecte em parte operações pontuais", diz-se que "mesmo após medidas de alívio fiscal e reforço de pensões, o rigor orçamental permitiu obter um resultado histórico". O cidadão comum, bombardeado com adjectivos, dificilmente descodifica o truque.

3. Empurrar a factura para o futuro (e sorrir no presente)

Outro capítulo indispensável do manual: anunciar hoje medidas simpáticas cuja factura orçamental mais pesada só aparece daqui a um ou dois anos. Aumentos faseados, alterações de escalões, benefícios que se tornam plenamente visíveis mais tarde – tudo serve para garantir boas notícias imediatas e adiar as más.

É como oferecer um banquete com o cartão de crédito do país: este ano paga-se pouco, para o ano a conta chega com juros. Na altura, talvez já outro Governo esteja no poder, pronto a ser acusado de "despesismo" quando, na verdade, apenas está a registar no papel o que foi politicamente decidido antes.

4. Fazer festa com a subida da receita fiscal

Uma das grandes bandeiras dos relatórios é o crescimento da receita fiscal. Fala-se de mais 2,4 mil milhões de euros arrecadados, de um IVA que "acelera" e rende mais 1,7 mil milhões. O discurso oficial sugere dinamismo económico, confiança e consumo saudável.

O que quase nunca se explicita é que boa parte deste "milagre" são impostos a morder mais fundo na vida de quem já anda no limite. O IVA é um imposto cego, que pesa proporcionalmente mais sobre quem tem menos. Assim, cada ida ao supermercado, cada conta de luz, cada despesa essencial alimenta o excedente que depois é exibido com orgulho. A festa da consolidação orçamental faz-se muitas vezes à custa de famílias silenciosas.

5. Esconder o buraco da Administração Central atrás do excedente da Segurança Social

Outro truque engenhoso consiste em agregar tudo sob o rótulo simpático de "Administrações Públicas". A Segurança Social apresenta excedentes robustos, as autarquias também. Já a Administração Central, essa, continua em défice significativo. Quando se mistura tudo no mesmo saco, o resultado geral aparece positivo – e o Governo pode proclamar vitória.

É como uma família em que o pai estoura no cartão de crédito, a mãe poupa e o filho trabalha ao fim-de-semana: somando, a casa até pode fechar o mês no verde. Mas se alguém disser "somos um exemplo de gestão financeira", está a esconder o verdadeiro desequilíbrio debaixo de uma média enganadora.

6. Falar em três línguas para que ninguém perceba

O vocabulário é parte central da maquilhagem: fala-se de "óptica de caixa", "contabilidade nacional", "efeitos base", "excedente primário", "saldo global". Tudo correcto, tudo tecnicamente justificável. Mas, na prática, é uma neblina perfeita para afastar o cidadão comum do debate.

Quando a explicação de um resultado orçamental só é inteligível para especialistas, o espaço público deixa de discutir o essencial – quem paga, quem beneficia, o que fica por fazer – e passa a confiar em resumos oficiais que vêm já prontos e temperados com "rigor" e "responsabilidade".

7. Repetir palavras mágicas até se tornarem dogma

Há três palavras que nunca faltam: rigor, excedente e contas certas. Se forem repetidas o suficiente, começam a funcionar como um selo automático de virtude. A maior parte das pessoas não tem tempo – nem energia – para ir verificar o que está por trás desses rótulos, e acaba por aceitar a etiqueta como verdade.

O problema é que estas palavras dizem muito pouco sobre a qualidade real das políticas públicas. Podemos ter excedente com serviços em degradação, rigor com pobreza envergonhada, contas certas à custa de escolas, hospitais e infraestruturas abandonadas. Mas o manual não pede justiça; pede apenas que o número certo apareça na linha certa.

8. O antídoto: ler o que está nas entrelinhas

A boa notícia, se é que há alguma, é que a maquilhagem orçamental não é invencível. Não é preciso ser perito em finanças públicas para começar a desmontar o truque; basta cultivar algumas perguntas simples sempre que um governante anunciar resultados triunfais.

Perguntas como:

  • Este número é anual ou apenas de alguns meses?
  • Resulta de factores estruturais ou de medidas temporárias e acertos de calendário?
  • Está em óptica de caixa ou em contas nacionais? Que diferença isso faz?
  • Quem está em excedente e quem continua em défice dentro do sector público?
  • Que serviços e investimentos ficaram por fazer para que este saldo parecesse tão bonito?

Governos mudam, o manual da cosmética orçamental tende a permanecer. O que pode evoluir é o nível de literacia e exigência de quem lê estes relatórios. Quando a cidadania passar a fazer estas perguntas de forma sistemática, talvez os números sejam finalmente usados para iluminar a realidade – e não apenas para a disfarçar.

Escrito por Francisco Gonçalves
com a colaboração conceptual de Augustus Veritas Lumen

Este texto integra a série "Contra o Teatro da Mediocridade", dedicada a desmontar os truques de linguagem, poder e contabilidade que mantém a ilusão de normalidade numa democracia cansada.

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