BOX DE FACTOS

  • Corrupção em Portugal não é episódio, é sistema: redes entre partidos, autarquias e grupos económicos.
  • Economia assente em salários baixos, turismo e serviços de pouco valor acrescentado.
  • Educação forma diplomados cansados em vez de cidadãos livres e críticos.
  • Justiça com duas velocidades: rápida e dura para os fracos, lenta e complacente para os fortes.
  • Democracia reduzida a ritual eleitoral, com baixa capacidade real de intervenção cidadã.

Portugal, democracia de fachada num país de corrupção mansa

Há uma mentira suave que se repete todos os dias em Portugal: a de que vivemos numa democracia madura, com instituições sólidas, justiça independente e economia em desenvolvimento. Por detrás da maquilhagem democrática, o que se vê é um país capturado por interesses, desigualdade e resignação.

A narrativa oficial gosta de garantir que estamos no bom caminho: crescemos "dentro da média europeia", somos um "exemplo de estabilidade democrática" e "as instituições funcionam". Mas quem vive no país real, paga impostos, enfrenta a burocracia e observa a impunidade dos poderosos, reconhece outra verdade: Portugal aproxima-se perigosamente dos traços de um país subdesenvolvido, apenas com melhor marketing e verniz europeu.

A corrupção infiltra o Estado, a economia cambaleia, a educação falha na sua missão mais nobre e a justiça parece calibrada para proteger precisamente aqueles que mais deveriam ser escrutinados. O resultado é uma democracia reduzida a teatro: muitos discursos, pouca transformação, nenhuma responsabilização séria.

Corrupção: o sistema, não o acidente

Quando se fala de corrupção, o discurso oficial adora a palavra "casos": casos mediáticos, casos isolados, casos lamentáveis, casos em investigação. É uma forma cómoda de maquilhar o essencial: em Portugal não temos apenas corruptos, temos um sistema que depende da corrupção para funcionar.

A promiscuidade entre partidos políticos, autarquias, grandes grupos económicos, escritórios de advogados e consultoras deixou de ser desvio e passou a método. Muitos negócios públicos parecem desenhados não para servir o interesse colectivo, mas para alimentar círculos privados de influência.

Bancos resgatados com dinheiro público, parcerias público-privadas desequilibradas, obras sobrefacturadas, consultorias em catadupa, contratos de milhões adjudicados sempre aos mesmos nomes: a lista é longa e repetitiva. À superfície, o Estado indigna-se; na profundidade, o sistema reorganiza-se e continua.

A corrupção não é apenas o envelope passado de mão em mão; é a captura lenta do aparelho de Estado por redes de interesse. E essa forma de corrupção, mais discreta, mais legalizada, é também a mais difícil de desmantelar.

Economia frágil: país barato à venda ao desbarato

Portugal é frequentemente promovido como "destino atractivo" para investimento e turismo. Na prática, isto traduz-se num slogan menos elegante, mas mais verdadeiro: mão de obra barata, serviços baratos, vidas baratas.

Em vez de uma estratégia séria de desenvolvimento industrial e tecnológico, com visão de 20 ou 30 anos, o país habitua-se a viver de turismo sazonal, construção civil, serviços pouco qualificados e fundos europeus muitas vezes mal aproveitados. O tecido produtivo de alto valor acrescentado existe, mas não graças a uma política de Estado: sobrevive apesar dela.

Os jovens mais qualificados percebem rapidamente o recado: se quiserem crescer profissionalmente, com salários dignos e ambientes exigentes, a porta de embarque do aeroporto é frequentemente mais eficaz do que qualquer concurso público ou entrevista nacional.

Não é por acaso que exportamos sistematicamente a nossa matéria-prima mais valiosa: cérebros. Ficam salários comprimidos, precariedade crónica e um discurso cínico sobre "produtividade" que recai sempre sobre quem ganha 800 ou 900 euros, nunca sobre quem concebeu um país dependente, subalterno e resignado.

Educação: fabricar diplomados, não cidadãos livres

Um sistema de educação digno desse nome deveria formar pessoas com capacidade crítica, consciência histórica, domínio da lógica, curiosidade científica e ética cívica sólida. Em vez disso, demasiado frequentemente, a escola portuguesa transforma-se numa linha de montagem de diplomados cansados, treinados para passar exames e preencher formulários, não para pensar o país e o mundo.

A filosofia é muitas vezes tratada como luxo, a história é reduzida a resumos apressados, a ciência é decorada em vez de compreendida. Os professores que ainda resistem com paixão e exigência fazem-no quase contra a corrente, e não porque o sistema os apoie.

Um país que teme cidadãos bem preparados e exigentes acaba por preferir consumidores distraídos, eleitores manipuláveis e trabalhadores com medo de perder o pouco que têm. É o ambiente perfeito para que a corrupção floresça sem grande resistência e para que a mediocridade se torne norma cultural.

Justiça desigual: quando a balança pende sempre para o mesmo lado

A justiça é talvez o espelho mais cruel da degradação democrática. Para o cidadão comum que falha um pagamento, se envolve num conflito laboral ou tropeça na burocracia, o sistema funciona: cartas registadas, penhoras, decisões relativamente rápidas quando interessa.

Para os poderosos, o cenário muda radicalmente: processos gigantescos com milhares de páginas, recursos intermináveis, incidentes processuais sucessivos, prescrições oportunas, anos e anos a fio sem decisão efectiva. Tudo dentro da lei, tudo escrupulosamente "respeitador do Estado de Direito".

A mensagem que se grava no inconsciente colectivo é devastadora: roubar pouco é arriscado; roubar muito, com bons contactos, é um modelo de negócio. A justiça, percebida como desigual, deixa de ser casa comum e transforma-se num mecanismo de controlo social que castiga os pequenos e absolve, por desgaste, muitos dos grandes.

Democracia como teatro: votar não é mandar

Tecnicamente, vivemos numa democracia. Temos eleições regulares, partidos, debates televisivos, comentadores indignados e alternância de governos. Mas, na prática, o que falta é o essencial: capacidade real do cidadão para influenciar o rumo do país.

Os grandes partidos tornaram-se máquinas de poder e distribuição de lugares, o Parlamento tende a ser caixa de ressonância de negociações feitas noutros sítios, e muitos governos comportam-se como administrações temporárias de interesses instalados. O voto sobrevive como gesto ritual, necessário para legitimar o jogo, mas cada vez mais esvaziado de esperança transformadora.

Há democracia formal, mas o seu conteúdo esvaziou-se a tal ponto que é legítimo dizer: o que temos é uma democracia de fachada, sustentada por um povo exausto, dividido e, muitas vezes, resignado. O teatro continua, porque o público ainda se senta na plateia. Mas são cada vez mais aqueles que já não acreditam no enredo.

E o que resta a quem vê isto?

A quem recusa fechar os olhos resta a lucidez – que dói, mas também liberta. Resta a decisão íntima de não aceitar a mediocridade como destino inevitável. Resta a recusa serena em pactuar com a mentira, mesmo que isso se limite ao nosso círculo imediato, à nossa maneira de trabalhar, escrever, educar e estar no mundo.

Nenhum texto, por si só, muda um país. Mas textos são sementes: registos fiéis de um tempo em que muitos fingiam não ver. Um dia, quando alguém perguntar "como deixaram isto chegar aqui?", será preciso que existam vozes que possam responder:

Nós vimos, denunciámos, escrevemos. Não foi por silêncio nosso que a farsa se manteve.

Enquanto houver quem pense, escreva e resista à anestesia colectiva, a corrupção poderá capturar o Estado, mas nunca capturará todas as consciências. E é aí, nesse espaço íntimo de liberdade, que começa qualquer possibilidade de futuro diferente.

Escrito por Francisco Gonçalves (com a colaboração conceptual de Augustus Veritas Lumen)

Este texto integra a série de crónicas sobre corrupção sistémica, pobreza democrática e a lenta captura do Estado português por interesses privados e mediocracia organizada.

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