Paulo Macedo - Cofres em boia: quem salva quem ?

"Os bancos não têm de salvar o Estado" — porquê esta frase soa (tão) mal?
CGD, lucros e dividendos vs. memória curta dos resgates: a anatomia de um paradoxo público
Box de Factos
- Frase do dia: "A Caixa não é o salvador das contas públicas; quem tem de salvar as contas públicas são os portugueses."
- Dividendo anunciado para 2026: ~1.000 milhões €.
- Apoios públicos à banca (2008–2023): ~21,6 mil milhões € (saldo ainda negativo acima de 21 mil milhões €).
- Recapitalização da CGD (2017): 3,9 mil milhões € com aval europeu.
- Hoje: acordo para vender 19% da Águas de Portugal à Parpública, com mais-valia para a Caixa.
Há frases que brilham na televisão e depois tropeçam nos factos. Dizer que um banco público "não é o salvador" das contas do Estado pode soar prudente — mas, em Portugal, depois de uma década e meia de resgates, é como anunciar dietas num banquete pago pelos contribuintes. A questão não é "salvar o Estado"; a questão é reconhecer que a banca vive — e prospera — de um ecossistema que o Estado garante: supervisão, seguro de depósitos, prestamista de último recurso, rating soberano e, quando tudo falha, a inevitável almofada do erário.
1) O que foi dito — e o contexto
"A Caixa não é o salvador das contas públicas. Quem tem de salvar as contas públicas são os portugueses."
A mensagem chega no mesmo momento em que a CGD anuncia o maior dividendo da sua história para o accionista-Estado em 2026 e prepara a venda de uma participação relevante em activos públicos. Em suma: não somos o salvador, mas ajudamos — desde que os ciclos e as margens o permitam.
2) Porque a frase é, no mínimo, infeliz
- Memória curta dos resgates: entre 2008 e 2023, o sector recebeu apoios públicos na ordem dos 21,6 mil milhões €. Mesmo com recuperações, o saldo global continua fortemente negativo. Dizer que o banco público não "salva" o Estado ignora que, quando a maré virou, foi o Estado a salvar a banca.
- CGD não é um banco qualquer: em 2017, a Caixa foi recapitalizada em 3,9 mil milhões €. Não foi caridade: foi política pública para proteger depósitos, crédito e estabilidade. Logo, a CGD tem deveres diferenciados — começam na prudência e estendem-se ao interesse económico nacional.
- Lucros privados, risco público: anos gordos rendem dividendos; anos magros transportam custos sistémicos. Esta assimetria é o cerne do problema. Sem regulação exigente e MREL robusto, a socialização de perdas volta sempre pela porta do fundo.
- Benefício de soberania: o custo de financiamento da banca desce quando o rating do país sobe. Isto é um subsidium implícito da estabilidade macro que o Estado sustém. Fingir que a relação é estanque é confundir independência de gestão com autarcia económica.
3) O que um enunciado responsável diria
"A CGD não substitui a política orçamental; devolve valor ao seu accionista com lucros recorrentes e prudentes, e cumpre uma missão pública: estabilidade, concorrência saudável e crédito à economia real." Assim, sim: separa-se o que é política de contas do que é gestão bancária — sem apagar a história recente.
4) Três medidas para alinhar palavras e realidade
- Relatório anual "Custo & Benefício Público da Banca" — com contas auditadas sobre apoios, recuperações, garantias e benefícios de rating. Transparência é vacina contra amnésia.
- Colchões de bail-in inatacáveis — MREL e TLAC dimensionados para choques severos, antes de qualquer euro de contribuinte.
- Mandato claro para a CGD — não ser "salvador" do Orçamento, mas ser âncora de estabilidade, concorrência e financiamento à economia produtiva, com métricas públicas de impacto.
No fim, não é pedir milagres a cofres: é pedir memória, rigor e decência. O Estado não deve usar a banca como caixa-automática do Orçamento; a banca não deve esquecer quem pagou a conta quando o chão cedeu. Entre o lucro e a missão, cabe à CGD provar — em actos — que não há contradição.