Parvalorem: o cemitério tóxico onde enterraram a vergonha da República

BOX DE FACTOS
- Parvalorem é uma empresa pública criada em 2010 para gerir os activos tóxicos do falido BPN, incluindo imóveis e créditos em incumprimento.
- É hoje um dos maiores devedores ao próprio Estado português, concentrando uma fatia significativa dos empréstimos públicos ao sector empresarial do Estado.
- Tem capital próprio fortemente negativo, sendo classificada como uma das empresas estatais em situação financeira mais crítica, ao lado da TAP.
- Desde 2008, o custo global dos apoios à banca ultrapassa os 21–22 mil milhões de euros líquidos para o Estado.
- Está em curso um processo de liquidação da Parvalorem, com horizonte de encerramento até final de 2027, acompanhado por programas de rescisões com trabalhadores.
Parvalorem: o cemitério tóxico onde enterraram a vergonha da República
Do BPN ao "bad bank": baptismo de um monstro orçamental
Parvalorem não nasceu por geração espontânea. Foi criada em 2010 para receber aquilo que já ninguém queria tocar com as mãos limpas: créditos incobráveis, imóveis sobreavaliados, participações duvidosas e toda a fauna de activos que o BPN espalhou pelo sistema financeiro como uma praga silenciosa. Em vez de se assumir claramente: "isto foi corrupção, compadrio e gestão criminosa", o Estado optou por uma solução mais higiénica no papel: um veículo financeiro, um bad bank, o nome técnico para dizer "a partir de agora, o lixo é do povo".
Durante anos, o discurso oficial repetiu o mantra da "estabilidade do sistema financeiro" e da necessidade de "proteger os depositantes". O que nunca se disse com a mesma clareza foi isto: protegeram-se também – e sobretudo – os interesses dos donos do sistema, dos administradores bem relacionados, dos grupos económicos que viveram acima de qualquer lei moral, certos de que o Estado viria sempre em seu socorro.
O maior devedor ao Estado… é o próprio espelho do Estado
Hoje, o maior devedor ao Estado não é uma multinacional qualquer, nem um magnata obscuro, nem um bando de pequenos empresários desesperados. É uma empresa pública – Parvalorem – criada precisamente para aparar o choque da irresponsabilidade alheia. O Estado empresta, o Estado garante, o Estado regista – e o mesmo Estado descobre, com ar compungido, que o seu maior devedor mora dentro de casa, sentado confortavelmente na sala das empresas públicas.
Em relatórios oficiais, Parvalorem surge frequentemente entre as entidades com capital próprio mais negativo de todo o sector público empresarial, partilhando o pódio com a TAP na categoria de "falência estrutural". Décadas depois do colapso do BPN, o buraco não desapareceu: foi simplesmente rebaptizado, reescalonado, reclassificado – e atirado para a frente no tempo, como se o futuro fosse um caixote do lixo infinito.
A ficção das "contas certas" e o custo silencioso da banca
Em paralelo, multiplicam-se os discursos triunfais sobre "excedentes orçamentais", "contensão da despesa" e "finanças públicas saudáveis". Mas por detrás do cenário, os números contam outra história: desde o início da crise financeira, os apoios directos e indirectos à banca já representam, em termos líquidos, mais de 21 mil milhões de euros que nunca voltaram aos cofres públicos.
Uma parte relevante desse custo está associada ao universo de activos tóxicos, garantias e perdas relacionadas com o BPN e a sua herança maldita. Parvalorem é o rosto institucional dessa herança: um rosto que quase nunca aparece nos telejornais, que não tem horário nobre, nem campanhas de marketing, nem slogans patrióticos. É o lado nocturno das "contas certas", aquele que só aparece em anexos técnicos, notas de rodapé e relatórios que quase ninguém lê.
Quando o pequeno devedor é inimigo público e o grande é parceiro de regime
A ironia é brutal: o mesmo Estado que persegue com zelo quase religioso pequenos contribuintes em atraso –famílias esmagadas, microempresas sufocadas pela tesouraria, cidadãos que falharam uma prestação – aceita com absoluta naturalidade que exista um colosso de dívida pública parqueado numa empresa criada por si próprio.
Se um cidadão deve alguns milhares de euros, o sistema trata-o como um delinquente fiscal. Se uma entidade ligada aos desastres da banca, inflacionados por decisões políticas, deve milhares de milhões, o sistema baptiza-a de "veículo", envolve-a em tecnicismos jurídicos e transforma o problema num caso de "gestão do legado financeiro". Não é apenas uma desigualdade económica: é uma hierarquia moral invertida, onde o peso da culpa é inversamente proporcional ao poder do devedor.
Liquidar a empresa sem liquidar o sistema
Agora, fala-se na liquidação da Parvalorem até 2027. Belo número redondo, cheio de dignidade burocrática: há plano, há calendário, há grupo de trabalho, há reestruturação, há rescisões "amigáveis". Tudo ordeiro, tudo administrativamente impecável.
Mas há uma pergunta que não cabe em nenhum quadro de Excel: O que é que se liquida, exactamente? Extingue-se a entidade jurídica, reorganizam-se activos, transferem-se carteiras, assumem-se perdas, fecham-se departamentos. Porém, a lógica que criou o monstro – a fusão promíscua entre capital financeiro e poder político – essa continua viva e bem instalada nos corredores das decisões, pronta a parir o próximo "veículo" quando estourar a próxima bolha.
Liquidar Parvalorem sem julgar, politicamente e moralmente, as opções que a tornaram inevitável é apenas arrumar papéis. É encerrar o cemitério sem nunca ter identificado os assassinos.
Uma República capturada pelos seus próprios cadáveres financeiros
Parvalorem é mais do que um "bad bank". É um símbolo de regime. Um país que tolera que o seu maior devedor seja uma criatura criada por si – para salvar os destroços de operações criminosas ou irresponsáveis – é um país que perdeu o pudor e a vergonha. Tornou-se normal que os erros gigantescos sejam tratados como "inevitabilidades" e que os culpados se dissolvam em organogramas e fusões.
A democracia esvazia-se quando os cidadãos são convocados apenas para pagar a conta, enquanto as decisões que criam o buraco são tomadas em salas fechadas, entre governos, reguladores e administradores que nunca respondem perante ninguém. Parvalorem é a prova viva de que, em Portugal, a responsabilidade política é um mito urbano e a responsabilidade financeira é um fardo hereditário que passa de geração em geração.
Fixar o nome, para não esquecer a lição
Sim, é preciso fixar o nome PARVALOREM. Não como curiosidade técnica de relatórios, mas como palavra-chave de um tempo em que se escolheu salvar bancos, grupos e interesses, enquanto se deixavam apodrecer serviços públicos, salários, pensões e projectos de futuro.
Um dia, quando a História for escrita sem medo, talvez alguém diga, com inteira verdade: "A República portuguesa foi capturada não apenas por corruptos declarados, mas por mecanismos discretos que transformaram a dívida privada em condenação perpétua para o bem comum." Nesse capítulo, Parvalorem terá direito a um parágrafo em letras negras – não por ser a única, mas por ser o exemplo perfeito de como se assassina a confiança de um povo com assinatura reconhecida em cartório.
Fontes e referências
- Conselho das Finanças Públicas – Sector Empresarial do Estado e Regional 2023-2024, análise às contas e à situação financeira das empresas públicas.
- ECO – "Maioria das empresas do Estado dá prejuízo e 35 estão em falência técnica, revela o Conselho de Finanças Públicas", 26-11-2025 (inclui referência à Parvalorem como entidade mais descapitalizada).
- Jornal Económico – "Parvalorem é a empresa estatal em estado mais crítico, segundo o CFP", 30-11-2024 (dados sobre capital próprio negativo e prejuízos acumulados).
- Diário de Notícias / Tribunal de Contas – peças e pareceres sobre a Conta Geral do Estado (2008–2024), com balanço dos apoios públicos à banca na ordem dos 21–22 mil milhões de euros líquidos.
- Esquerda.net – "96,5% da ajuda pública à banca não foi recuperada", 13-10-2025 (síntese dos dados do Tribunal de Contas sobre a recuperação mínima dos apoios ao sector financeiro).
- ECO, Jornal de Negócios, SBN e estruturas sindicais do sector bancário – notícias de 07-08-2025 sobre o plano de liquidação da Parvalorem e o programa de rescisões associado ao encerramento até 2027.
Francisco Gonçalves — em co-autoria crítica com Augustus Veritas, para Fragmentos do Caos.