O Comendador dos Mil Milhões e o País dos Tolos

BOX DE FACTOS
- As dívidas do universo empresarial de Joe Berardo à CGD, BCP e BES/Novo Banco somam cerca de mil milhões de euros, resultantes sobretudo de financiamentos para compra de acções do BCP em 2007.
- O Ministério Público acusa Berardo e dois advogados de burla qualificada, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada, por um esquema destinado a impedir os bancos de recuperarem os créditos.
- Cerca de 2.200 obras de arte das colecções de Berardo foram arrestadas, incluindo as 862 obras da antiga Colecção Berardo no CCB.
- O antigo Museu Colecção Berardo foi extinto e deu lugar ao MAC/CCB – Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitectura, que mantém em depósito a Colecção Berardo por decisão judicial.
- Enquanto os processos se arrastam há quase duas décadas, o buraco na banca pública foi coberto com milhares de milhões de euros de dinheiro dos contribuintes.
Alegoria da justiça capturada pelo dinheiro e pela mediocridade institucional.
O Comendador dos Mil Milhões e o País dos Tolos: A Farsa da Dívida que Nunca Acaba
Durante quase vinte anos, o caso Berardo foi tratado como um folhetim pitoresco sobre um comendador excêntrico e os seus quadros milionários. Na realidade, é uma radiografia brutal de um país governado por medíocres: bancos que emprestam o que não deviam, um Estado que socializa o prejuízo e uma justiça que chega sempre atrasada ao crime mas pontualíssima à porta de quem deve duzentos euros ao fisco.
A anatomia de um escândalo: quando o risco é para os outros
A história é conhecida, mas o país finge que a esquece. Ao longo dos anos que antecederam e seguiram a famosa guerra de poder no BCP, o universo empresarial de Joe Berardo engoliu centenas de milhões de euros em crédito concedido por três bancos nacionais: Caixa Geral de Depósitos, BCP e BES/Novo Banco. Não para investir em indústria, inovação ou emprego qualificado, mas para alimentar batalhas de controlo accionista e jogos de poder em Lisboa, bem longe da economia real.
Os montantes são pornográficos para um país com salários de miséria: perto de mil milhões de euros em financiamentos, com a particularidade deliciosa de muitas das garantias serem as próprias acções compradas com o dinheiro emprestado, ou participações em estruturas ligadas à colecção de arte. Risco concentrado, garantias frágeis, exposição absurda. A banca sabia exactamente o que estava a fazer. Fê-lo na mesma. Porque, no fim, alguém pagaria a conta.
Banca privada na euforia, Estado salvador no dia seguinte
O guião da tragédia é sempre o mesmo. Nos anos de euforia, os bancos fazem de conta que são casinos inteligentes: distribuem fichas aos "jogadores certos", com taxas simpáticas e cláusulas maleáveis. Depois, quando a roleta pára, descobre-se que a mesa estava viciada – mas só para um lado.
No caso Berardo, a Caixa Geral de Depósitos, banco público, assumiu uma fatia generosa desta aventura. Quando o castelo de cartas ruiu, o que se seguiu foi a reacção pavloviana do regime: reestruturações suaves para o devedor "estratégico" e recapitalizações duríssimas para o contribuinte anónimo. A CGD foi enchida com milhares de milhões de euros de dinheiro público, em nome da famosa "estabilidade do sistema financeiro", essa fórmula mágica que significa sempre a mesma coisa: as perdas dos grandes são distribuídas por todos, em prestações invisíveis, através de impostos, taxas, cortes e serviços degradados.
Aos pequenos empresários que faliram pela mesma altura, ninguém ofereceu almofadas douradas. Faltou-lhes a condecoração, o palco mediático, a proximidade ao poder. Faltou-lhes, sobretudo, um Estado disposto a tratá-los como "sistémicos". Para esses, havia apenas penhoras, tribunais e silêncio.
A arte arrestada e o país em hipoteca moral
Quando finalmente a realidade bateu à porta, não só os créditos estavam em incumprimento, como as garantias valiam uma fracção do sonho vendido. A resposta foi tão simbólica quanto cruel: cerca de 2.200 obras de arte das colecções de Berardo foram arrestadas, incluindo as 862 peças da antiga Colecção Berardo no Centro Cultural de Belém. O Estado tornou-se fiel depositário de um tesouro artístico que funciona, ao mesmo tempo, como penhor judicial e como cenário cultural de fachada.
O antigo Museu Colecção Berardo desapareceu do mapa para dar lugar ao MAC/CCB – um novo museu de arte contemporânea que expõe, entre outras, obras de uma colecção que está ao mesmo tempo em exibição e em litígio. É difícil encontrar metáfora mais perfeita para o país: um museu aberto ao público, erguido sobre um subsolo de dívidas por pagar, arrestos judiciais e contratos obscuros, enquanto os visitantes passeiam entre Picasso, Warhol e Magritte sem imaginar a factura escondida nas paredes.
Justiça em câmara lenta: a pedagogia do cinismo
Só muitos anos depois dos empréstimos e dos primeiros incumprimentos é que a máquina da justiça parece ter acordado em pleno. O Ministério Público acusou Joe Berardo, dois advogados e a própria Associação Colecção Berardo de burla qualificada, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e outros crimes, descrevendo um esquema desenhado para fintar os bancos credores através de uma ação cível simulada e de uma dança de entidades jurídicas criadas à medida do problema.
Mas a lentidão com que tudo isto andou – e ainda anda – envia ao país uma mensagem devastadora: se deve muito e a muitos, se as cifras têm seis ou nove zeros e se o assunto envolve bancos e fundações, então o tempo deixa de ser linear. A justiça torna-se elástica, moldável, negociável. Só os devedores pequenos vivem presos a prazos rígidos, juros automáticos e penhoras expeditas.
A pedagogia é perfeita para fabricar cinismo social: os portugueses aprendem, dia após dia, que há dois códigos penais – um para quem falha no IMI, outro para quem falha em mil milhões.
O país dos comendadores: privatizar o lucro, nacionalizar o buraco
O caso Berardo não é um acidente isolado, é um padrão. Um padrão de capitalismo de compadrio em que a condecoração vale quase tanto como uma garantia bancária, e a proximidade ao poder político funciona como seguro contra a falência real.
O mecanismo é simples, quase elegante na sua obscenidade: primeiro, um banco público e bancos privados de importância sistémica alimentam a feira de vaidades e guerras de controlo com crédito barato e critérios que nunca seriam usados para famílias ou pequenas empresas. Depois, quando tudo implode, entra em cena o Estado, não para proteger os contribuintes, mas para salvar o sistema que os esmagou.
O lucro foi privado, os dividendos alimentaram egos, reputações e compras de arte. O rombo, esse, foi socializado. Caiu em cima de quem nunca entrou no CCB, de quem não sabe o que é "arte contemporânea", de quem apanha autocarros cheios e espera meses por uma consulta no SNS.
A factura invisível: reformas de miséria, serviços em ruína
Quando olhamos para estes mil milhões de euros, parece tudo muito distante, abstrato, quase técnico. Mas a verdade é brutal: as recapitalizações da banca pública e os buracos criados pela irresponsabilidade de gestores, políticos e comendadores são pagos com décadas de contenção orçamental, salários comprimidos, investimento público adiado, serviços degradados.
Cada pensionista que vive com 400 ou 500 euros por mês paga, na prática, prestações invisíveis desta saga. Cada jovem que emigra porque não consegue uma vida digna em Portugal financia, com a sua partida, o equilíbrio artificial de um sistema que nunca foi desenhado para ele – mas sempre esteve disponível para os Berardos deste mundo.
O país fica com a dívida, o comendador fica com a narrativa folclórica: o empreendedor ousado, o amante da arte, o "visionário" que se senta na primeira fila da mediocridade institucional.
Epílogo – De quem é, afinal, a vergonha?
É fácil apontar o dedo a Joe Berardo e dizer: aqui está o vilão. De facto, há muito por onde apontar. Mas ficar por aí é cómodo demais. Porque nenhuma burla de mil milhões nasce sem cumplicidade, sem portas abertas, sem telefonemas, sem decisões de crédito assinadas por administradores muito bem pagos, sem tutela política a olhar para o lado enquanto o risco se acumulava.
A vergonha não é só de um comendador que faz da esperteza modo de vida. A vergonha é de um regime inteiro que continua a tratar estes casos como anomalias, quando são, na realidade, o produto mais acabado da sua forma de funcionar.
Enquanto o país aceitar, resignado, que há sempre dinheiro para tapar buracos na banca, mas nunca há dinheiro para salários dignos, escolas decentes e hospitais funcionais, a farsa continuará: com novos nomes, novas colecções, novos comendadores. E nós, espectadores e financiadores compulsórios, continuaremos a pagar bilhete para um teatro onde raramente escolhemos a peça, mas somos sempre nós que varremos o palco no fim.
Crónica de opinião de Francisco Gonçalves (Fragmentos do Caos).
Texto co-criado com o assistente de IA Augustus Veritas, ao serviço da memória crítica e da insubmissão cívica. Mais uma crónica para que a história não apague o rasto da mediocridade e da injustiça que hoje fingem ser normalidade.