BOX DE FACTOS

  • Durante duas décadas, Berlim e outras capitais europeias aprofundaram a dependência do gás russo, acreditando que o comércio domaria Putin.
  • Nord Stream 1 e 2 simbolizaram o pacto tácito: energia barata em troca de silêncio geopolítico perante a agressão russa.
  • Chechénia, Geórgia, Crimeia, Donbass, envenenamentos e assassinatos políticos foram tratados como "incidentes" periféricos.
  • A Europa financiou, com cada metro cúbico de gás, a máquina militar e repressiva que hoje devora a Ucrânia.
  • O divórcio energético pós-2022 chega tarde e com factura pesada: inflação, recessão, e uma ordem internacional mais frágil.

O Abraço de Gás:
Como a Europa se Sentou ao Colo de Putin

Durante anos, a Europa repetiu que defendia a paz, os direitos humanos e a democracia. Ao mesmo tempo, assinava cheques astronómicos ao Kremlin em troca de gás barato, fingindo não ver os prédios que explodiam em Moscovo, os corpos de jornalistas abatidos, as fronteiras violadas à força de tanques. Hoje, com a Ucrânia dilacerada e negociações obscuras a desenharem uma "paz de interlúdio", a pergunta já não é quem é Putin. A pergunta é: quem fomos nós, enquanto o alimentávamos?

A ilusão confortável: paz europeia a gás russo

Durante duas décadas, a narrativa oficial em Berlim, Paris, Roma e noutras capitais europeias soava a conto de fadas tecnocrático: comércio traz interdependência; interdependência traz moderação. Se a Rússia estivesse profundamente ligada à economia europeia, diziam, nunca arriscaria pôr tudo em causa com aventuras militares. Era a velha Ostpolitik reciclada para o século XXI: desta vez não com oleodutos simbólicos, mas com uma teia espessa de contratos de gás, investimentos e consórcios energéticos.

No centro deste enredo, ergueu-se a Alemanha de Angela Merkel. Depois de Fukushima, Berlim acelerou o fecho das centrais nucleares e decidiu apoiar-se numa tríade frágil: renováveis em crescimento, carvão que se tentava enterrar, e gás russo barato como ponte mágica para segurar a sua poderosa indústria. A equação parecia perfeita: fábricas competitivas, energia a preços suportáveis, uma Rússia "parceira" e um continente contente.

Só havia um pequeno problema: o parceiro do outro lado da tubagem era Vladimir Putin, um homem saído dos serviços de segurança soviéticos, que subiu ao poder em cima de ruínas fumegantes e de uma guerra sangrenta na Chechénia. Tudo o que ele fez desde 1999 gritava "não confiem em mim". A Europa ouviu, tomou nota… e continuou a assinar contratos.

Moscovo, 1999: os prédios que caem, o império que se ergue

Em 1999, uma série de explosões em blocos habitacionais em Moscovo e noutras cidades russas matou centenas de civis inocentes. A versão oficial apontou o dedo a terroristas chechenos e abriu a porta à segunda guerra da Chechénia. Na sombra dessa violência, um novo primeiro-ministro emergia como "homem forte" pronto a restaurar a ordem: Vladimir Putin.

Investigadores independentes e antigos agentes começaram, rapidamente, a levantar uma hipótese inquietante: e se aqueles atentados tivessem sido, pelo menos em parte, obra dos próprios serviços russos, num gigantesco falso ataque para justificar guerra e autoritarismo? O episódio de Riazan, em que agentes do FSB foram apanhados com explosivos num prédio e o caso foi depois reclassificado como "exercício", deixou um rasto de suspeita que nunca se dissipou.

Mesmo sem um veredicto definitivo, o padrão que se desenhava era brutal: um regime disposto a usar o medo e o sangue dos seus próprios cidadãos para consolidar poder. Para qualquer dirigente europeu atento, isto deveria ter sido primeiro sinal vermelho a piscar. Em vez disso, foi arquivado na gaveta do "assunto interno russo".

Assassinatos, envenenamentos, guerras pequenas: o catálogo que a Europa engoliu

Depois vieram os anos da lista negra. A jornalista Anna Politkovskaya, uma das vozes mais corajosas contra a guerra na Chechénia, abatida a tiro. O antigo agente Alexander Litvinenko envenenado em Londres com polónio. Boris Nemtsov, opositor destacado, morto à queima-roupa a poucos metros do Kremlin. E, pelo meio, outros críticos a caírem de varandas, a adoecerem misteriosa e convenientemente, a desaparecerem do mapa.

Em paralelo, a política externa russa tinha a assinatura de um império em desconstrução e raiva: Geórgia em 2008, com tropas a avançarem sobre território soberano; Crimeia em 2014, anexada com um referendo feito à sombra de fardas sem insígnia; Donbass em combustão lenta, alimentado por armas e homens enviados de Moscovo.

Cada um destes episódios podia ter sido um ponto de viragem. Podia ter sido o momento em que a Europa dizia: "basta, não podemos depender energeticamente de um regime que se comporta assim". Em vez disso, a resposta foi sempre a mesma combinação de comunicados solenes e negócios tranquilamente renovados. A moral ficava nos discursos; o dinheiro continuava a fluir pelos gasodutos.

Merkel, Nord Stream e a moral suspensa

O símbolo máximo desta capitulação elegante chamou-se Nord Stream. O primeiro gasoduto, e depois o projecto Nord Stream 2, cortavam o mapa do Báltico como cordões umbilicais de aço entre a Rússia e a Alemanha, contornando deliberadamente os países da Europa de Leste que conheciam o imperialismo russo na pele.

Governos de Varsóvia, Vilnius, Riga, Tallinn e Kiev gritaram alerta: estavam a ver, em tempo real, a construção de uma arma geopolítica nas mãos de Putin. Berlim respondeu com tecnocracia: "é apenas um projecto económico". A França, a Itália e outras capitais foram fazendo coro discreto. A Europa dividia-se entre os que se lembravam do Império Soviético e os que acreditavam na Rússia como parceiro energético respeitável.

Mesmo depois da anexação da Crimeia, Merkel manteve o apoio político ao Nord Stream 2. Só já com tanques russos enfiados até à garganta na Ucrânia, em 2022, é que o projecto foi formalmente congelado. A essa altura, a lição já não era preventiva; era uma confissão tardia de erro estratégico monumental.

França, Itália e o coro dos bem instalados

Não foi apenas Berlim que se sentou ao colo de Putin. Empresas francesas, italianas, holandesas e de outros países assinaram contratos confortáveis com a Gazprom, investiram em infraestruturas, participaram em consórcios. Tudo isto enquanto, em público, se proclamava um compromisso inabalável com os direitos humanos e a ordem internacional.

O cinismo institucionalizou-se: condenar nos microfones, comprar no mercado; dizer "Crimeia é ilegal", mas continuar a canalizar euros para o orçamento russo. A máquina de propaganda do Kremlin soube ler esta ambivalência como fraqueza moral: a Europa queria sentir-se virtuosa sem pagar o preço da virtude. E um regime que conhece apenas a linguagem da força sabe o que fazer com essa contradição.

A invasão de 2022: o divórcio forçado

A 24 de Fevereiro de 2022, o sonho tecnocrático europeu colidiu com o aço e o fogo. Os tanques russos avançaram sobre a Ucrânia numa operação que, aos olhos de qualquer observador minimamente informado, não surgiu do nada: era o capítulo seguinte de uma lógica imperial anunciada há anos. Só então, sob choque e pressão popular, a União Europeia começou o divórcio energético acelerado da Rússia.

De repente, aquilo que durante anos fora considerado "extremismo" – reduzir drasticamente a dependência do gás russo – tornou-se ortodoxia. Os governos correram atrás de terminais de LNG, diversificação de fornecedores, aceleração das renováveis, planos de contingência. Tudo acompanhado por inflação, ameaça de racionamento, medo social. Era a factura concentrada de duas décadas de conforto fingido.

A ironia cruel é que a Europa financiou, durante anos, a máquina que agora a ameaça. Cada euro pago por gás e petróleo ajudou a fortalecer as reservas do Kremlin, a modernizar o exército, a robustecer o aparelho repressivo. O que se gasta hoje para apoiar a Ucrânia e reparar o estrago é apenas uma parte do que se pagou, em avanço, a um regime que nunca mereceu confiança.

O interlúdio perigoso: paz de papel com tanque ao lado

No presente, enquanto se desenham negociações que podem congelar a guerra na Ucrânia em troca de concessões territoriais e promessas vagas, repete-se um padrão inquietante: procura-se uma solução rápida que acalme mercados e eleitorados, mesmo que deixe a raiz do problema intacta. Os mesmos reflexos que levaram a Europa a abraçar o gás russo surgem agora no impulso de assinar uma "paz possível", ainda que putrefacta.

Se o resultado for um interlúdio em que Putin consolida ganhos, reconstrói a sua máquina de guerra e se prepara para nova ofensiva quando o cansaço europeu for maior, nada de essencial terá mudado. Apenas se acrescentará um capítulo à longa história da complacência ocidental com ditadores que sabem jogar a carta da energia, do medo e do tempo.

Lições tardias para um continente cansado

A grande tragédia deste enredo é a sua previsibilidade. Não faltaram vozes de alerta, sobretudo nos países que conheceram tanques soviéticos nas ruas. Faltou foi coragem política em Berlim, Paris e noutras capitais para sacrificar, a tempo, uma parte do conforto económico em nome da segurança a longo prazo.

As lições, por isso, são tão simples quanto duras:

Primeiro: nenhum projecto energético estrutural deve depender de um regime autoritário disposto a usar energia como arma. O gás nunca foi apenas um produto; foi sempre uma alavanca de poder.

Segundo: não se pode separar política interna de política externa num regime como o de Putin. Quem aceita envenenar opositores, manipular terror, silenciar jornalistas e esmagar minorias não será um parceiro fiável no xadrez internacional.

Terceiro: a paz não se constrói com comunicados, constrói-se com escolhas difíceis. A Europa quis ser simultaneamente virtuosa, barata e confortável. Descobriu, tarde, que só podia escolher duas dessas três coisas.

Epílogo – A factura moral do gás barato

Hoje, quando olhamos para as cidades ucranianas destruídas, para os campos minados, para as famílias arrancadas à força das suas casas, é tentador apontar o dedo apenas a Moscovo. Mas, num plano mais fundo, há uma responsabilidade que pertence também a nós, europeus: alimentámos o monstro enquanto nos dava aquecimento central em promoção.

A História será implacável ao julgar esta geração de líderes que, tendo visto os sinais desde Moscovo em 1999, passando por Grozny, Tbilissi e Simferopol, escolheram a conveniência em vez da lucidez estratégica. Poderão argumentar que não sabiam o que Putin faria em 2022. Mas sabiam, há muito, do que ele era capaz. E ainda assim, sentaram-se no seu colo, com contrato assinado e fluxo de gás garantido.

Talvez a verdadeira mudança na Europa só comece quando admitirmos esta cumplicidade, sem escapismos. Só então poderemos reconstruir uma política externa e energética assente não apenas em cálculos de curto prazo, mas numa ética da responsabilidade que não troque, outra vez, a liberdade de um povo pela temperatura confortável de um Inverno bem aquecido.

Escrito por Francisco Gonçalves, em colaboração criativa com Augustus Veritas Lumen, para o projecto editorial Fragmentos do Caos.

Este texto integra a série de crónicas críticas sobre a mediocridade política europeia e as suas consequências geopolíticas.

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