BOX DE FACTOS

  • Plano de paz em 28 pontos nasce de conversas privilegiadas entre Washington e Moscovo, e só depois é apresentado a Kiev e às capitais europeias.
  • Ucrânia aceita a "essência" do plano sob forte dependência económica e militar dos Estados Unidos, tentando corrigir cláusulas de capitulação disfarçada.
  • A Europa reage tarde, com um contra-plano em 19 pontos, revelando a sua impotência estratégica num conflito que se desenrola no seu próprio continente.
  • O risco maior: legitimar, com selo internacional, conquistas territoriais obtidas pela força, congelando a guerra sob o nome enganador de "paz".
  • O processo testa a dignidade da Ucrânia e da Europa – e expõe um Ocidente dividido entre a justiça e a comodidade geopolítica.

Negociações à margem: Ucrânia em caução, Europa como figurante

Há algo de obsceno na imagem: um país destruído, um continente ameaçado, e o futuro da guerra decidido em salas discretas onde a Ucrânia é caução, a Europa figurante, e a paz uma palavra gasta que serve de verniz a um mapa redesenhado pela força.

Enquanto mísseis continuam a cair sobre cidades ucranianas, em hotéis de luxo e salas discretas discute-se a "arquitectura de paz" para o leste da Europa. Fala-se em pontos delicados, em compromissos históricos, em fórmulas de segurança. Mas há um detalhe que corrói tudo isto: o essencial destas negociações foi lançado à margem da própria Ucrânia e com a Europa reduzida a convidada tardia de um banquete geopolítico que a afecta directamente.

O chamado plano em 28 pontos, patrocinado pelos Estados Unidos, foi desenhado num primeiro movimento entre Washington e Moscovo. Só depois Kiev foi chamada a "discutir detalhes". Só depois Bruxelas, Berlim, Paris ou Varsóvia puderam folhear o guião. O país que sangra e o continente que treme foram informados, não convocados.

Um plano em 28 pontos que não nasceu em Kiev

O plano norte-americano apresenta-se como um roteiro abrangente para calar as armas, redesenhar garantias de segurança e enquadrar o futuro da Ucrânia entre o Ocidente e a Rússia. Mas, na sua essência, ele carrega três elementos explosivos para Kiev:

  • cedências territoriais em áreas actualmente ocupadas pela Rússia, ainda que embrulhadas em fórmulas jurídicas ambíguas;
  • exclusão da Ucrânia da NATO, convertendo em cláusula escrita aquilo que Moscovo exigiu pela força;
  • limitações estruturais às forças armadas ucranianas, cristalizando um desequilíbrio militar duradouro.

Não admira que muitos analistas considerem o plano, na sua versão original, fortemente inclinado a favor do Kremlin. O mais perturbador não é apenas o conteúdo, mas o método: é um país invadido a ser confrontado com a visão de paz dos seus patrocinadores e do seu agressor, em vez de começar por ser autor da sua própria proposta.

Europa: potência económica, figurante geopolítica

Quando os contornos do plano se tornaram públicos, as capitais europeias reagiram com uma mistura de choque e resignação. Não só pelo que o texto sugeria, mas pelo que revelava: a segurança do continente estava a ser redesenhada sem que a Europa tivesse escrito a primeira versão do guião.

Bruxelas, Berlim, Paris e outras capitais apressaram-se a produzir um contra-plano em 19 pontos, tentando corrigir o enviesamento pró-russo e recuperar espaço político. As palavras são firmes, as notas diplomáticas multiplicam-se, mas a realidade é difícil de mascarar: a Europa entrou tarde numa negociação que lhe diz respeito desde o primeiro dia.

Potência económica, sim. Potência geopolítica, apenas nos comunicados. Em vez de convocar a mesa, o Velho Continente aceita o papel de editor de última hora, riscando frases e acrescentando vírgulas num texto já praticamente fechado por outros.

Ucrânia entre o escombro e a chantagem diplomática

Oficialmente, Kiev declara aceitar a "essência" do plano e fala em "pontos sensíveis" ainda por resolver. Na prática, a margem de manobra é dramática. A Ucrânia depende de ajuda externa para tudo: munições, defesa aérea, energia, salários. A sua capacidade de continuar a guerra está amarrada à disposição política de Washington e, em menor grau, das capitais europeias.

Quando um país luta pela sobrevivência com armamento e financiamento de aliados, a palavra negociação transforma-se. Deixa de ser diálogo entre iguais para se tornar gestão da percentagem aceitável de capitulação. Os "pequenos detalhes" são, na verdade, linhas vermelhas: fronteiras, soberania, futuro geopolítico.

A equipa de Zelensky tenta resistir: reescreve parágrafos, apaga exigências mais extremas, insiste em não transformar em letra de lei aquilo que Moscovo impôs pela força no terreno. Mas paira sempre a mesma pergunta não dita, vinda de quem controla a torneira da ajuda:

Quereis continuar a lutar com o nosso dinheiro, ou aceitar esta paz desenhada longe de vós?

Washington, Moscovo e o regresso das esferas de influência

Por detrás da linguagem diplomática e dos comunicados optimistas, o que está em jogo é o velho conceito de esferas de influência. Moscovo quer consolidar, pela assinatura de um acordo internacional, aquilo que já conquistou pela força. Washington quer encerrar um dossiê caro e politicamente desgastante, projectando-se como mediador eficaz junto da opinião pública doméstica.

No meio, a Ucrânia arrisca tornar-se mais objecto do que sujeito, e a Europa uma variável de ajuste. A figura do enviado especial norte-americano, vindo do mundo imobiliário para a diplomacia de alto risco, torna quase literal a metáfora: o futuro de um país é tratado como um negócio complexo, cheio de cláusulas, garantias e contrapartidas, onde cada lado tenta maximizar ganhos e minimizar perdas.

É o eco distante de Yalta em versão século XXI: menos mapas físicos sobre a mesa, mais ases geopolíticos na manga, mas a mesma tentação de redesenhar o destino de povos inteiros a portas fechadas.

A impotência calculada da Europa

Porque é que a Europa aceita este papel de figurante indignado? Porque, apesar de décadas de discursos sobre autonomia estratégica, continua estruturalmente dependente dos Estados Unidos para a sua segurança militar e para a própria sustentação da Ucrânia em guerra.

O continente não garante sozinho fluxo de armas suficiente, não suporta, sem custos políticos internos massivos, um conflito prolongado à porta de casa, e teme, acima de tudo, uma escalada directa com a Rússia. Entre os países do leste, que sabem o que significa viver sob o medo de Moscovo, e os do oeste, que receiam acima de tudo a factura económica e o choque eleitoral, forma-se um mosaico de indecisões.

Mesmo que o contra-plano europeu consiga corrigir parte do texto, a vulnerabilidade de fundo permanece: se Washington decidir encurtar o apoio, a Europa não tem unidade nem músculo para segurar sozinha a frente ucraniana. E quem depende assim de outro dificilmente dita o ritmo de uma paz.

Paz ou pausa? O perigo do congelamento com chancela internacional

O risco maior destas negociações à margem é simples de enunciar e difícil de desfazer: chamar paz a um congelamento de guerra que legitima, na prática, as conquistas da força. Um acordo que consolide a linha da frente actual, empurre a Ucrânia para uma neutralidade forçada e deixe em aberto o futuro das zonas ocupadas não encerra o conflito – apenas o arquiva sob outro nome.

A narrativa oficial poderá falar de concessões dolorosas em nome da paz, de um compromisso histórico, de um novo capítulo para a segurança europeia. Mas, se as bases forem essas, saberemos que o que se assinou não foi uma paz justa: foi um armistício vergonhoso, com selo dos mesmos que juraram defender o Direito internacional.

Teste à História e à dignidade europeia

No fim, estas negociações dizem tanto sobre a guerra na Ucrânia como sobre a saúde moral e política do Ocidente. Se a comunidade internacional aceitar que um país pode ser mutilado à mesa por conveniência geopolítica, então a Carta das Nações Unidas desce do pedestal para a vitrina de peças históricas. Se a Europa consentir em ser figurante num conflito que redefine a sua própria ordem de segurança, assume, diante da História, a sua própria irrelevância estratégica.

Talvez ainda haja espaço para inverter o guião: para uma Europa que bata o pé de verdade, para uma Ucrânia que recuse morrer em prestações, para um Ocidente que se recorde de que a paz sem justiça é apenas silêncio antes da próxima explosão. Mas, por enquanto, o que vemos é isto: negociações decisivas conduzidas longe de Kiev e da Europa, com mapas sobre mesas onde quem mais sofre tem menos voz.

E a História, que não esquece, tomará nota de cada assinatura e de cada silêncio cúmplice.

Escrito por Francisco Gonçalves em coautoria com Augustus Veritas (IA colaborativa ao serviço da lucidez).
Publicado em Fragmentos do Caos, na série Contra o Teatro da Mediocridade.
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