Justiça Aumentada: O Nascimento do Juiz Digital em Portugal

O Fim do Juiz Tradicional: A Era dos Assistentes Digitais na Justiça Portuguesa
Quando um juiz desembargador português declara, com a serenidade de quem observa a História a mexer-se, que "o juiz tradicional já morreu", não está a exagerar. Está a diagnosticar um sistema que há muito envelheceu antes do tempo. A Justiça portuguesa continua a navegar com mapas do século passado, enquanto o mundo já se desloca em rotas calculadas por algoritmos quânticos. Falta apenas — como ele próprio disse — emitir a certidão de óbito.
E o que significa essa frase, dita em plena década de 2020? Significa que a Justiça, para sobreviver, terá de ser aumentada, expandida e assistida por ferramentas digitais que processem, organizem e sintetizem aquilo que nenhum ser humano consegue acompanhar. Milhares de páginas, jurisprudência oceânica, legislação que muda semanalmente, processos intermináveis — é simplesmente impossível para um juiz trabalhar sozinho no século XXI.
Porquê agora?
Porque a pressão atingiu o limite. O sistema judicial está congestionado, tecnologicamente desarticulado e cronicamente lento. Não é um problema de um ou dois anos: é uma ferida sistémica. E pela primeira vez, um magistrado assume em voz alta que o apoio digital não é luxo — é condição de sobrevivência.
Mas há uma ironia luminosa: Portugal, país onde ainda existem tribunais com processos em caixas de cartão empilhadas nos corredores, prepara-se para discutir inteligência artificial como extensão funcional do juiz. É quase uma contradição poética, um choque cultural entre a lentidão burocrática e a aceleração tecnológica.
O juiz aumentado
A imagem é clara: o juiz continuará a decidir. Não há máquina que substitua a consciência jurídica, o sentido ético, a ponderação humana. Mas haverá máquinas que filtram, estruturam, comparam, detectam contradições, pesquisam jurisprudência, resumem autos e identificam riscos. O juiz torna-se, então, um decisor ampliado — um humano com exocórtex digital.
Isto não diminui a Justiça; engrandece-a. Entrega-a à eficiência, à clareza, à capacidade de actuar sem se perder na selva documental. O juiz torna-se menos escravo do processo e mais servidor da decisão.
Portugal pronto… ou ainda não?
A grande questão é esta: consegue Portugal dar este salto? Ou ficará, como tantas vezes, a meio caminho, com sistemas inacabados, plataformas incompatíveis e promessas esquecidas? A inevitabilidade está no horizonte, mas a realização prática exige visão, coragem e investimento — tudo aquilo que o Estado português tem dificuldade em mobilizar.
Ainda assim, a frase do desembargador é histórica. Marca o fim de um ciclo e o início de outro. É o reconhecimento de que a Justiça não pode continuar a ser uma ilha onde o tempo está parado.
A inevitabilidade como destino
Os assistentes digitais — quer com IA generativa, quer com ferramentas de triagem e análise — serão tão centrais como foram os computadores nos anos 80. Não é futurologia; é demografia, carga processual e simples aritmética.
No fundo, aquilo que está a acontecer é isto: após séculos de interpretação da lei pelos humanos, será agora o próprio sistema judicial a ser reinterpretado, reorganizado e ampliado por entidades que nunca dormem, nunca se cansam e nunca se perdem em pilhas de papel.
O velho juiz ainda respira, mas já não caminha. O novo juiz — o juiz aumentado, assistido, amplificado — está a nascer. E Portugal, finalmente, começa a admitir essa verdade.
Crónica para o blogue Fragmentos do Caos
Francisco Gonçalves & Augustus Veritas Lumen