Interlúdio de Paz Macabro: O Tratado que Ensina a Guerra a Esperar

BOX DE FACTOS
- Um esboço de plano de paz de 28 pontos chegou a exigir que a Ucrânia cedesse à Rússia a Crimeia, Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporíjia, aceitasse limites ao seu exército e renunciasse para sempre à NATO.
- Líderes europeus alertam que qualquer acordo que redesenhe fronteiras pela http://www.fragmentoscaos.eu/wp-content/uploads/2025/11/file_00000000c3e0720ab2d5cc6c0947f075.png
- Enquanto delegações se sentam em Abu Dhabi e Genebra, a Rússia continua a lançar mísseis e enxames de drones contra a infra-estrutura energética ucraniana, deixando mortos, feridos e cidades às escuras.
- Kiev diz aceitar a "essência" do plano, mas admite "pontos sensíveis" que terão de ser renegociados – sob pressão de quem detém a arma do financiamento militar.
- Vários analistas consideram que uma paz que proíba a Ucrânia de aderir à NATO e a reduza a Estado amputado e desarmado será apenas um intervalo entre esta guerra e a próxima.
Interlúdio de Paz Macabro:
O Tratado que Ensina a Guerra a Esperar
Misséis sobre Kiev, apertos de mão em Abu Dhabi
Nos mesmos dias em que delegações americanas, russas e ucranianas se sentam em hotéis de Abu Dhabi e Genebra para discutir o fim da guerra, a Rússia lança ataques maciços contra a infra-estrutura energética da Ucrânia. Sirenes em Kiev, subestações destruídas, bairros às escuras, idosos resgatados de edifícios em chamas. A coreografia é grotesca: Putin negocia "paz" com uma mão e, com a outra, testa quantas redes eléctricas pode destruir antes de os europeus desligarem a televisão e mudarem de canal.
Os comunicados oficiais falam em "desenvolvimentos positivos" e "avanços no plano". Mas, no chão de Kiev, a palavra "paz" soa como ironia amarga. Enquanto se discute a arquitectura de um novo tratado, os corpos continuam a ser retirados de escombros. Este é o primeiro sinal de que algo está profundamente errado com o enredo: quando a paz é negociada ao som de explosões, não é paz, é gestão de danos para consumo mediático.
O plano de 28 pontos: um país amputado com selo de chanceler
O rascunho que veio a público – um plano de 28 pontos cozinhado em Washington com forte mão de conselheiros que há muito orbitam entre negócios e geopolítica – era tudo o que o Kremlin podia sonhar. No seu núcleo, desenhava-se uma Ucrânia reduzida a um corpo mutilado: Crimeia, Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporíjia definitivamente cedidas; o exército limitado por tratado; a promessa de nunca aderir à NATO gravada na Constituição como se fosse uma sentença perpétua.
Em troca desta capitulação elegante, Moscovo oferecia aquilo que oferece desde 2014: garantias verbais de não agressão. As mesmas garantias que rasgou com gosto quando assinou os acordos de Minsk para, logo depois, alimentar a guerra no Donbass. O guião é velho, mas há sempre quem finja que o final será diferente desta vez.
A reacção em Kiev foi um misto de choque e resignação. Zelensky falou em "essência aceitável" mas "pontos sensíveis" a discutir. Como não o faria? O país depende de munições, sistemas de defesa aérea, apoio financeiro que passa pela mesma mão que surge agora com um plano pré-escrito. É o dilema cruel de quem luta pela sobrevivência: quando o teu oxigénio vem da mesma fonte que te oferece uma mordaça, escolher torna-se um acto de alto risco.
A Europa entre o alívio fácil e a memória recente
No meio deste teatro, a Europa assiste dividida. De um lado, os governos cansados que olham para sondagens, orçamentos e facturas de energia, sonhando com um "acordo qualquer" que lhes permita dizer aos eleitores que a guerra acabou. Do outro, uma linha de líderes do Leste e do Norte – e, por fim, a própria presidente da Comissão – a lembrar o óbvio: carimbar a amputação de um país soberano é abrir um precedente letal.
Ursula von der Leyen veio dizer em voz clara o que muitos apenas murmuravam: não pode haver "carving up" – repartição à faca – de uma nação europeia para satisfazer o apetite do Kremlin. Não se podem impor limites artificiais ao exército ucraniano nem fechar-lhe a porta da NATO como condição de paz. Aceitar isso seria não só trair a Ucrânia, mas convidar outros predadores a testar fronteiras noutras latitudes.
A memória ainda está fresca: em 2014, muitos subestimaram a anexação da Crimeia, tratando-a como "caso especial". Em 2022, descobriram o preço dessa auto-ilusão quando os tanques seguiram para Kiev. Agora, uma parte da Europa recusa repetir o erro; a outra continua à procura de uma saída rápida, como quem quer apagar um incêndio soprando sobre as chamas.
Capitulação não é paz, é convite
Há uma verdade simples que muitos estrategas têm repetido quase até à exaustão: um acordo que recompensa a agressão não é paz, é incentivo. Se a mensagem para o mundo for "invadir compensa, desde que tenhas tempo e armas nucleares", então não é apenas a Ucrânia que fica em risco. Países com velhas ambições imperiais tomarão notas cuidadosas. Pequim, Ancara, Teerão e outros actores silenciosos estarão a medir o perímetro da coragem ocidental com régua milimétrica.
Limitar o exército ucraniano por tratado internacional, proibi-lo de se integrar numa aliança defensiva e forçá-lo a abdicar de uma parte substancial do seu território seria transformar a Ucrânia num Estado tampão condenado à vulnerabilidade permanente. Um país amputado, condenado a viver com o agressor encostado à porta e legalmente autorizado a ser mais forte do que ele.
Quem confunde isto com paz, confunde silêncio com justiça. Esquece que houve também silêncio depois de Munique em 1938 – e o que se seguiu não foi paz duradoura, foi apenas uma guerra que tomou fôlego.
A tentação americana do "acordo já"
Do lado americano, o impulso é claro: um Presidente sedento de fotografia histórica, a narrativa fácil de "eu acabei com a guerra que os outros não conseguiram resolver", e uma opinião pública cansada de cheques para um país distante cujo mapa muitos não saberiam desenhar. O cálculo político é cruelmente simples: quanto mais depressa se puder anunciar um acordo, melhor para o ciclo eleitoral interno – ainda que os custos reais sejam pagos, anos depois, por europeus e ucranianos.
A máquina diplomática que rodeia a Casa Branca fala em "reconstruir a arquitectura de segurança" e "estabilizar a Europa". Palavras bonitas para um desenho em que a Rússia regressa a fóruns de prestígio, vê sanções aliviadas em parcelas e oferece, em troca, um pedaço de papel com promessas já quebradas no passado. É a velha tentação do tratado-espectro: parece solução, mas não tem substância para parar o próximo tanque.
E a Ucrânia no meio desta coreografia?
No meio de tudo, permanece o país que está a ser bombardeado. A Ucrânia vive a mais cruel das dicotomias: resistir até ao fim ou aceitar uma paz envenenada para salvar o que resta. Cada dia de guerra custa vidas, cidades, gerações inteiras marcadas pelo trauma. Cada concessão estrutural feita à pressa pode condenar essas mesmas gerações a viver sob ameaça perpétua.
Quando Zelensky diz estar pronto para "avançar com o plano", mas insiste em renegociar as cláusulas de desarmamento e de amputação territorial, está a caminhar num fio de navalha. Se recusa o acordo, arrisca-se a perder parte do apoio ocidental. Se o aceita em versão desfigurada, arrisca-se a perder a confiança do próprio povo e a reduzir a independência da Ucrânia a um ritual decorativo.
Epílogo – Paz verdadeira ou pausa para carregar munições?
A pergunta que atravessa este interlúdio de paz macabro é brutal na sua simplicidade: estamos a desenhar o fim da guerra ou apenas a pausa entre esta guerra e a próxima? Uma paz que consagra anexações, limita o direito de defesa da vítima e confia na palavra do agressor é, na melhor das hipóteses, um cessar-fogo instável. Na pior, é o anúncio da próxima ofensiva, escrito em linguagem jurídica.
Se a Europa quiser sair desta história sem repetir a vergonha da sua dependência energética de Putin, terá de abandonar a lógica do "qualquer acordo serve" e assumir uma posição adulta: não há paz sem justiça mínima, não há segurança se o agressor for premiado. Isso implica manter sanções, reforçar a defesa ucraniana, usar activos russos congelados para reconstruir o país destruído – e recusar soluções rápidas que só servem para limpar consciências a tempo das próximas eleições.
Entre uma paz difícil, mas justa, e um interlúdio macabro que apenas ensina a guerra a esperar, a escolha parece óbvia. O problema é que, na política real, o óbvio costuma ser a opção mais dura. E é exactamente por isso que, de vez em quando, a História precisa de lembrar aos dirigentes que a coragem não é um adorno de discurso: é aquilo que separa um tratado digno de ser assinado de um simples pedaço de papel molhado em sangue.
Escrito por Francisco Gonçalves, em colaboração com Augustus Veritas Lumen, para o projecto editorial Fragmentos do Caos.
Esta crónica integra a série "Contra o Teatro da Mediocridade", dedicada a dissecar as ilusões, cobardias e auto-enganos da política europeia contemporânea.