Portugal, o País que Sonha Gigafábricas de IA

Box de Factos
Declaração: "Portugal tem todas as condições para se tornar líder mundial na IA" — Ministro da Reforma do Estado, Web Summit.

Portugal, país de mares largos e promessas rápidas, acordou hoje com mais uma epopeia anunciada. Segundo o ministro, temos "todas as condições para ser líder mundial na IA". Era caso para Camões levantar a cabeça da tumba e perguntar, com aquele sorriso cansado dos que já viram demasiada farsa:

— Todas? Mesmo todas? Até as que ainda não existem?

E assim prossegue a velha arte performativa dos discursos de palco. Na boca do governante, o país transforma-se, por minutos, num prodígio tecnológico: as estradas esburacadas convertem-se em auto-estradas de dados quânticos, a burocracia evapora-se em algoritmos belos e silenciosos, e cada freguesia parece ganhar, imaginariamente, o seu centro de supercomputação com GPUs de ouro maciço — tudo graças ao encanto da frase bem lançada.

É a magia portuguesa do século XXI: não temos infraestruturas, não temos energia barata, não temos capital de risco, mas temos declarações.

E que declarações. "Gigafábricas de IA", anuncia-se, como quem proclama que vamos abrir colónias em Júpiter na próxima primavera. Entretanto, na vida real, continuamos sem garantir que os serviços públicos funcionem sem aquele famoso "erro 500" que se tornou parte da identidade digital do país.

Mas não importa. A farsa não vive da execução — vive do instante. Da pose, da iluminação, da respiração colectiva de um auditório impressionado. A Web Summit é o palco perfeito para essa dramaturgia luminosa: estrangeiros boquiabertos, governantes radiantes, e um país inteiro a treinar o seu sorriso futurista.

Há, porém, um lirismo triste por trás desta fantasia. Portugal sonha — sonha sempre — porque acordado pouco consegue fazer. Sonha para fugir ao peso das décadas de investimento frágil, da sangria do talento, da pobreza discreta que percorre os cabos subterrâneos deste pequeno território atlântico.

E por isso anuncia o impossível, porque o possível exige trabalho, continuidade, disciplina, visão — qualidades que não cabem bem na maquilhagem de um discurso político de abertura.

E assim segue o nosso pequeno teatro nacional: entre o verso e o logro, a esperança e a trapaça, o lirismo e a farsa.

Francisco Gonçalves
Série: Contra o Teatro da Mediocridade


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