BOX DE FACTOS

  • Todos os presidentes do Conselho Europeu foram antigos chefes de governo nacionais, transformando Bruxelas numa espécie de promoção automática para políticos já gastos.
  • Vários ex-líderes europeus passaram por cargos bem pagos em bancos de investimento, grandes empresas e lóbis, num padrão de portas giratórias cada vez mais criticado.
  • A União Europeia acumula relatórios e decisões da Provedora de Justiça sobre conflitos de interesses mal geridos em movimentos de "revolving door".
  • A distância entre o cidadão e as instituições europeias cresce à medida que Bruxelas se converte em refúgio dourado para elites políticas em fim de ciclo.
  • O resultado é um défice de confiança: uma Europa que se diz democrática, mas que recicla fracassos nacionais em carreiras internacionais bem remuneradas.

Europa, spa de reciclagem dos políticos falhados

A União Europeia gosta de se ver como catedral da democracia e da paz. Mas, nos bastidores, funciona cada vez mais como um spa de luxo onde antigos primeiros-ministros, ministros desgastados e comissários em fim de carreira vão descansar, lavar a imagem e recolher um último salário dourado, enquanto os países que governaram ficam a contar as ruínas.

Há um mapa secreto que nunca aparece nos manuais de "cidadania europeia". Não mostra apenas fronteiras, instituições ou programas comunitários, mas sim o circuito discreto das portas giratórias: de Lisboa a Bruxelas, de Berlim a Estrasburgo, de Paris ao Luxemburgo, segue uma linha contínua onde políticos em queda livre nas sondagens nacionais ressurgem, meses depois, em cargos europeus de prestígio, cuidadosamente embrulhados em linguagem tecnocrática.

A narrativa oficial fala em "experiência", "capacidade de diálogo", "perfil europeu". Mas, se retirarmos a maquilhagem, o que vemos muitas vezes é isto: um continente que converte o fracasso político doméstico em carreira internacional. A Europa, que podia ser laboratório de renovação democrática, arrisca transformar-se em sanatório dourado para elites esgotadas.

Deixar a casa em chamas, apanhar o voo e aterrar em Bruxelas

O caso português é paradigmático. Um primeiro-ministro governa quase uma década um país com serviços públicos exaustos, salários de miséria e juventude em fuga. Demite-se sob o peso de suspeitas políticas e judiciais, deixando para trás um rasto de fadiga social e desconfiança. Poucos meses depois, é eleito em Bruxelas para um cargo máximo das instituições europeias, desta vez como figura de equilíbrio, moderador entre Estados, guardião da "unidade europeia".

Não é apenas sobre uma pessoa; é sobre um padrão. A União reivindica que precisa de líderes com experiência nacional, mas raramente pergunta que tipo de legado deixaram. Um país pode estar à beira da ruptura, desde que o antigo chefe de governo saiba circular em corredores, sorrir em cimeiras e não levantar ondas contra o consenso dominante.

Para quem ficou cá em baixo, a sensação é amarga: políticos que falharam, ou pelo menos deixaram tarefas inacabadas, são recompensados com mais poder, mais salário e mais distância do escrutínio popular. Quem paga o bilhete desta promoção é o mesmo contribuinte que ficou preso na fila do hospital, na sala de aula precária, no salário mínimo glorificado em conferências.

O Conselho Europeu: a câmara alta dos ex-chefes de Governo

Desde que o cargo de Presidente do Conselho Europeu foi criado, todos os seus ocupantes partilharam um ponto em comum: foram anteriormente chefes de governo dos respectivos países. Não é coincidência; é desenho político. O clube dos "líderes dos líderes" é, na prática, o último degrau de uma escada percorrida em capitais nacionais, muitas vezes ao sabor de maiorias frágeis, compromissos obscuros e crises sucessivas.

Este mecanismo teria alguma lógica se funcionasse como coroação de carreiras exemplares. Mas, na vida real, demasiado frequentemente trata-se de uma saída elegante para quem já não tinha espaço político no seu país. Perde-se influência dentro de portas, ganha-se prestígio fora. O currículo nacional é reciclado em "capital de experiência", e os fracassos domésticos são dissolvidos na neblina da "complexidade europeia".

A mensagem subliminar é devastadora para a cidadania: o escrutínio nacional é um problema temporário, a Europa é a recompensa definitiva. A urna de voto corrige governos; Bruxelas corrige carreiras.

Barroso, Goldman Sachs e o ouro líquido das portas giratórias

Peguemos num nome que se tornou símbolo: um antigo primeiro-ministro português que, depois, presidiu durante duas décadas políticas à Comissão Europeia. No fim do mandato em Bruxelas, em vez de regressar discretamente à vida académica ou à reflexão pública, atravessou uma das portas mais ruidosas de sempre: aceitou um cargo de topo numa grande instituição financeira internacional, precisamente uma daquelas que beneficiam – directa ou indirectamente – de regras e decisões saídas da própria Europa que liderou.

O caso foi tão escandaloso que motivou ondas de críticas, relatórios, pareceres de ética, comunicados ofendidos. Explicou-se, claro, que tudo estava "dentro das regras", que os prazos de nojo tinham sido respeitados, que não havia ilegalidade. Talvez não houvesse. Mas a questão nunca foi apenas legal; foi moral e simbólica.

Quando um ex-presidente da Comissão atravessa a rua para servir um gigante financeiro, a mensagem para o cidadão é clara: a fronteira entre poder público e interesse privado é, na melhor das hipóteses, uma cortina de fumo. E é aqui que o "spa de reciclagem" deixa de ser metáfora e passa a ser diagnóstico: quem sai das águas mornas de Bruxelas sai muitas vezes directo para jacuzzi ainda mais quente no sector privado global.

Ursula e companhia: fim de ciclo em casa, renascimento em Bruxelas

A actual presidente da Comissão Europeia é outro exemplo do fenómeno, ainda que com contornos diferentes. Durante anos participou nos governos federais do seu país – família, trabalho, defesa – até que o desgaste político e as críticas à sua gestão no ministério da Defesa tornaram improvável uma ascensão a chefe de governo nacional.

Quando parecia chegar ao fim de ciclo em Berlim, foi catapultada, por decisão de um Conselho Europeu reunido à pressa, para o topo da máquina comunitária. As dúvidas sobre competência, legitimidade e processo democrático foram abafadas pela retórica da "primeira mulher à frente da Comissão" e da "solução de compromisso" que salvava a cimeira de um impasse embaraçoso.

Mais uma vez, a Europa funcionou como plataforma de aterragem para um percurso nacional esgotado. Não estamos a falar de incapazes – muitos destes protagonistas são inteligentes, trabalhadores, conhecem dossiers. O problema é outro: a lógica que recompensa sobretudo a habilidade de sobreviver ao jogo partidário, e não a capacidade de prestar contas a quem vive com as consequências das decisões.

Bruxelas, capital das biografias lavadas

A vida em Bruxelas tem as suas virtudes: distância suficiente para evitar manifestações ruidosas à porta de casa; uma imprensa paneuropeia difusa, que raramente acompanha em detalhe o passado nacional de cada figura; uma cultura política onde o jargão técnico é escudo e espada. Aqui, um curriculum problemático transforma-se, com o tempo, numa biografia "complexa".

É neste caldo que o spa de reciclagem prospera. Ex-líderes com derrotas eleitorais, ex-ministros com dossiers mal resolvidos, comissários cansados da política interna: todos encontram nas estruturas europeias um lugar onde podem falar de "transição verde", "governança económica", "resiliência democrática" – enquanto o mundo real dos seus antigos compatriotas continua às voltas com cortes, precariedade e burocracia.

A própria União, consciente do desconforto que estas práticas geram, produziu relatórios, códigos de conduta, pareceres sobre conflitos de interesses. Mas, tal como acontece com muitas contas públicas, as regras valem mais como documentos de auto-absolvição do que como travões efectivos. A indignação dura o tempo de um ciclo noticioso; as carreiras, essas, duram décadas.

O preço democrático de um spa para elites

O problema não é apenas estético. Uma Europa que recicla fracassos nacionais em triunfos institucionais está a cavar o seu próprio fosso democrático. O cidadão olha para Bruxelas e vê, muitas vezes, um andar superior onde as consequências se evaporam. O voto que derruba um governo não impede que os mesmos rostos surjam, sorridentes, nas cimeiras seguintes, agora com outro crachá.

Este mecanismo alimenta o discurso populista mais fácil: "eles protegem-se uns aos outros", "a Europa é um clube fechado", "o sistema está viciado". E o mais trágico é que, em parte, esse discurso tem razão. Quando os cidadãos percebem que não há verdadeira responsabilização, a frustração deixa de ser mero mal-estar e transforma-se em cinismo corrosivo ou em fúria cega – terreno fértil para extremismos de todos os lados.

A ironia é brutal: a União Europeia nasceu para proteger a democracia, mas pode acabar por fragilizá-la se continuar a funcionar como refúgio dourado para quem já a desgastou nas capitais nacionais.

Como fechar, de verdade, as portas giratórias

Não basta lamentar. Se a Europa quiser ser mais do que spa de reciclagem, tem de aceitar reformas duras:

  • prazos de nojo prolongados e efectivos entre cargos públicos europeus e funções privadas com interesse directo nas decisões tomadas;
  • impedimentos claros para que antigos líderes com registos domésticos marcados por escândalos assumam imediatamente funções de topo em instituições comunitárias;
  • comités de ética independentes e com poder real de veto, não simples decoradores burocráticos;
  • transparência radical sobre contactos, convites, consultorias e cargos acumulados;
  • e, sobretudo, um debate público honesto sobre quem queremos ver a representar a Europa e com que mandato.

Uma Europa adulta precisa de assumir que a legitimidade não nasce do tapete azul das cimeiras, mas da confiança dos povos que a compõem. E essa confiança não se compra com comunicados solenes; conquista-se com coerência entre o que se faz e o que se prega.

Epílogo: um outro continente possível

O continente que saiu das ruínas da Segunda Guerra merecia melhor do que um condomínio de elites em fim de carreira. A Europa pode ser muito mais do que spa de reciclagem: pode ser escola de responsabilidade, laboratório de democracia exigente, espaço onde o poder sobe e desce em função do serviço prestado e não do número de portas que cada um consegue atravessar.

Para isso, é preciso que alguém continue a apontar o dedo às incoerências, a desmontar a liturgia dos cargos, a lembrar que atrás de cada nome gravado numa placa em Bruxelas há um país concreto – com escolas, hospitais, trabalhadores, velhos e jovens – que não pode ser reduzido a linha de currículo.

Enquanto houver quem escreva, denuncie e recuse esta normalidade perversa, a Europa ainda não se terá rendido totalmente ao conforto morno do spa. Haverá sempre, algures, uma porta que se fecha às carreiras recicladas e se abre à possibilidade de uma política diferente – menos dourada, mas infinitamente mais decente.

Escrito por Francisco Gonçalves
com a colaboração indisciplinada de Augustus Veritas Lumen

Crónica integrada na série "Contra o Teatro da Mediocridade", dedicada a expor as engrenagens ocultas da democracia europeia e dos seus salões de luxo.

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