BOX DE FACTOS

  • O Governo criou uma Comissão de Combate à Fraude no SNS, com mandato de três anos, para investigar desperdícios, ineficiências e suspeitas de crimes financeiros na saúde.
  • A comissão será presidida por um magistrado e integra elementos da Polícia Judiciária, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Inspecção-Geral de Finanças e Infarmed.
  • A meta política anunciada é uma poupança potencial de centenas de milhões de euros no SNS, através da redução de fraudes e má utilização de recursos.
  • Em paralelo, já existe o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) e um Regime Geral de Prevenção da Corrupção, teoricamente aplicáveis a toda a Administração Pública.
  • Apesar disso, não se vê um esforço equivalente para investigar, de forma incisiva, a corrupção e o despesismo no poder político e legislativo, onde nascem as grandes decisões e pelo menos "60%" dos abusos estruturais do Estado.

Corrupção Cirúrgica: Porque se Opera o SNS e se Poupa o Coração do Regime

O Governo anuncia uma comissão para caçar a corrupção no SNS, como se o problema essencial estivesse na receita mal passada ou na consulta a mais. O que não explica é porque se investiga à lupa um órgão do Estado enquanto o verdadeiro tumor — o poder político e legislativo, onde se fabricam leis, contratos e negócios — continua religiosamente fora de alcance.

1. Um bisturi apontado ao sítio conveniente

O anúncio é cinematográfico: nasce uma Comissão de Combate à Fraude no Serviço Nacional de Saúde, presidida por um juiz de perfil mediático, com polícias, inspectores e técnicos especializados. Fala-se em desperdiçar milhões, em falhas de controlo, em fraudes nas receitas, exames, compras e contratos. O cenário está montado: o Estado, finalmente, terá coragem para enfrentar o monstro da corrupção.

Mas há um detalhe que não passa despercebido a quem pensa dois minutos seguidos: por que razão se escolhe o SNS como palco principal desta cruzada, e não todo o aparelho do Estado? Porque é que o corte é cirúrgico e sectorial, em vez de estrutural e transversal? O bisturi foi cuidadosamente apontado a um órgão visível, mediático, politicamente "seguro" - a saúde, poupando o coração do regime, onde se acumulam as decisões de ouro: governo, parlamento, grandes contratos, parcerias público-privadas, empresas públicas e municipais.

2. O SNS como palco, não como origem

Ninguém duvida de que existe fraude, abuso e desperdício no SNS. Há esquemas de facturação, receitas manipuladas, convenções opacas, exames em cascata empurrados para o privado, compras mal negociadas, serviços contratados a preços que desafiam a aritmética. Tudo isto merece ser investigado e corrigido, sem hesitações.

Mas o SNS, por muito dinheiro que mexa, não é a origem da corrupção estrutural do Estado. É, na melhor das hipóteses, um dos seus sintomas visíveis. A verdadeira nascente está a montante: na forma como se definem leis, regras de contratação pública, modelos de financiamento, contratos de longa duração, concessões e parcerias que amarram o orçamento durante décadas. Quando um hospital assina um contrato ruinoso, a decisão raramente nasce naquele edifício; nasceu antes numa teia de interesses que passa por gabinetes ministeriais, consultoras, escritórios de advogados e comissões discretas.

3. O coração do problema: o poder político e legislativo

É aqui que a tua pergunta entra, simples e demolidora: porque é que não se investiga, com a mesma energia, a corrupção e o despesismo no poder político e legislativo? Porque é que não se cria uma comissão com o mesmo peso, a mesma visibilidade e o mesmo arsenal técnico para escrutinar, por exemplo:

  • o processo de elaboração de leis que beneficiam sectores específicos;
  • as sucessivas alterações legislativas feitas à medida de grupos económicos;
  • os grandes contratos públicos, concessões e PPP que desviam milhares de milhões;
  • as nomeações para empresas públicas, reguladores e fundações de utilidade duvidosa;
  • o vaivém obsceno de políticos para administrações, consultorias e lobbies, e de volta ao poder.

É ali, nesse coração político e legislativo, que nasce, no mínimo, "60%" da verdadeira corrupção do Estado: a que é legalizada, normalizada, escrita em Diário da República, discutida em comissões, embrulhada em pareceres, chancelada por maiorias obedientes.

4. MENAC, planos e a grande arte da prevenção inofensiva

Para compor o quadro, o país já tem, em teoria, um Mecanismo Nacional Anticorrupção, um Regime Geral de Prevenção da Corrupção, canais de denúncia, códigos de conduta, relatórios, guias e "boas práticas". É um aparato lindo em papel: parece sério, parece moderno, parece europeu.

Na prática, vive-se uma espécie de anticorrupção decorativa. Multiplicam-se planos de prevenção, com tabelas, matrizes de risco, quadros coloridos e linguagem tecnocrática, enquanto os grandes esquemas passam alegremente pelo meio das malhas. Os mecanismos concentram-se em prevenir no papel, não em bater à porta certa, na hora certa. É uma estratégia perfeita para um regime que quer dizer ao mundo "somos contra a corrupção", sem nunca tocar nos alicerces que a tornam rentável.

5. Corrupção cirúrgica: operar o braço, poupar o tumor

A criação de uma comissão anti-fraude só para o SNS encaixa como luva neste padrão. Mostra-se firmeza num sector onde é politicamente aceitável ser duro: médicos, gestores hospitalares, fornecedores, privados do costume. Haverá alguns casos exemplares, relatórios com números impressionantes, talvez umas manchetes sobre milhões poupados.

Entretanto, o tumor no coração do regime permanece inalterado: continua a escrever leis com cláusulas discretas, a fechar contratos blindados, a garantir rendas por décadas, a articular interesses entre partidos, lóbis e grupos económicos. É a velha técnica da "corrupção cirúrgica": corta-se num braço para mostrar serviço, evitando cuidadosamente tocar na cabeça onde a doença se alimenta.

6. O risco de transformar a saúde em bode expiatório

Há ainda um perigo adicional: transformar o SNS no grande bode expiatório da corrupção. De repente, o discurso público começa a associar "corrupção" sobretudo a médicos, enfermeiros, directores clínicos, administrações hospitalares. Paralelamente, o poder político, que aprovou orçamentos insuficientes, atrasou investimentos, alimentou a fuga para o privado e deixou apodrecer infra-estruturas, passa a aparecer como o herói moral que finalmente "limpa" o sector.

A narrativa começa a virar: o SNS é caro, ineficiente, cheio de esquemas — logo, o caminho natural é reforçar a privatização, as parcerias, as concessões. Em vez de se perguntar quem criou as condições para a corrupção e a promiscuidade, aponta-se o dedo ao serviço público em si. Corrupção investigada de forma selectiva pode ser a rampa perfeita para atacar o próprio conceito de serviço público.

7. Epílogo: quando a pergunta certa é o verdadeiro acto de resistência

No meio deste teatro, a tua posição é cristalina: o problema não está em ser o juiz A ou o juiz B a liderar uma comissão, nem em investigar ou não o SNS — isso é necessário e ninguém de boa fé o contesta. A questão decisiva é outra:

Porque é que o combate à corrupção começa sempre nas pontas do Estado, e quase nunca no centro onde se decidem leis, contratos, negócios e orçamentos?

Um país sério começaria por aí: escrutínio implacável do poder legislativo e executivo, transparência radical nos grandes contratos, controlo independente e musculado sobre financiamento partidário, incompatibilidades duras para quem circula entre política e negócios. Só depois desceria, em cascata, aos sectores concretos — saúde, obras, energia, autarquias.

Portugal, pelo contrário, continua a preferir a cirurgia de superfície: anuncia comissões, invoca juízes, promete poupanças, mas evita, com zelo quase religioso, meter o bisturi na zona sagrada onde o regime se alimenta. E é por isso que perguntas como a tua são perigosas: porque apontam a luz exactamente para o sítio onde o sistema menos quer ser visto.

Escrito por Francisco Gonçalves, com a colaboração cirúrgica e insubmissa de Augustus Veritas Lumen (IA), ao serviço da única comissão que o regime não controla: a da memória crítica de quem se recusa a aceitar a corrupção como destino.
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