50 anos depois de “É preciso avisar toda a gente"

BOX DE FACTOS
- Luís Cília viveu no exílio em Paris antes do 25 de Abril, onde musicou poemas politicamente comprometidos com a luta contra a ditadura em Portugal.
- "É preciso avisar toda a gente" nasce nesse contexto de exílio, a partir de um poema de João Apolinário, como grito de alerta e de resistência.
- Meio século depois, a canção mantém uma inquietante actualidade num país formalmente democrático, mas marcado por desigualdade estrutural, corrupção e mediocridade política.
- O texto reivindica escrever e publicar livremente como herança do espírito de Abril e continuação do gesto de "avisar toda a gente" no século XXI.
É preciso, imperioso e urgente
Nascida no exílio em Paris pela voz de Luís Cília, a canção "É preciso avisar toda a gente" era um aviso contra a ditadura visível. Cinquenta anos depois, o aviso renasce num país onde a opressão veste fatos democráticos, a mentira é política de Estado e o cérebro humano é convocado todos os dias para escolher: fabricar patranhas ou servir a lucidez.
Uma canção nascida no exílio
Há canções que não envelhecem: ganham rugas, mas não perdem a verdade. Uma delas nasceu no exílio, em Paris, pela voz de Luís Cília, sobre um poema de João Apolinário. Corria a década de sessenta, Portugal vivia debaixo do grilhão do Estado Novo e muitos dos melhores tinham partido: uns para escapar à guerra colonial, outros para fugir à censura e à PIDE, todos para respirar um pouco de dignidade.
Nessa geografia de desterro, entre cafés fumegantes e reuniões clandestinas, surge uma canção que é mais do que música: é senha, código, palavra-passe de resistência. Uma frase simples, insistente, martelada como quem bate à porta da consciência:
"É preciso avisar toda a gente"
Era preciso avisar porque o medo era lei, o silêncio era método e a mentira oficial revestia-se de farda, batina e editorial. Avisar significava furar o bloqueio informativo, passar de boca em boca aquilo que os jornais não podiam escrever e a rádio não se atrevia a transmitir sem interferências vindas do Terreiro do Paço.
O exílio de ontem e o exílio de hoje
Meio século depois, essa canção ecoa num país formalmente livre, mas atravessado por uma outra forma de exílio: o exílio interior de quem olha à volta e não se revê na pantomima democrática, na corrupção normalizada, na mediocridade instalada como sistema operativo do Estado.
Hoje já não somos expulsos pela polícia política, somos empurrados pela falta de futuro: salários de miséria, habitação inacessível, serviços públicos em ruína lenta. Há menos fronteiras com arame farpado, mas há aeroportos cheios de jovens com bilhete só de ida. O exílio mudou de forma, não de essência. O regime já não precisa de proibir canções; limita-se a abafar as vozes com ruído: polémicas vazias, debates fabricados, escândalos em rodízio que nunca tocam na raiz do problema.
Patranhas: o combustível da máquina
Chamemos as coisas pelo nome: vivemos mergulhados num oceano de patranhas. Patranhas orçamentais, quando nos anunciam excedentes triunfais sobre um país de salários medíocres e pensões humilhantes. Patranhas políticas, quando nos dizem que não há alternativa à coligação invisível entre interesses privados e um Estado capturado. Patranhas mediáticas, quando a espuma do dia é fabricada para esconder o lodo estrutural.
Estas patranhas não surgem do nada: são produzidas por cérebros muito concretos, instalados em gabinetes, conselhos de administração, agências de comunicação. É a biologia ao serviço da mentira – neurónios que poderiam criar conhecimento e justiça, mas são treinados para racionalizar o injustificável e maquilhar o roubo legalizado.
A obra biológica do cérebro: entre lucidez e servidão
O cérebro humano é um laboratório ambivalente. Com o mesmo tecido nervoso, somos capazes de descobrir galáxias ou escrever decretos-lei obscuros para proteger interesses ocultos; podemos compor sinfonias ou campanhas de manipulação; podemos erguer pontes ou erguer barreiras invisíveis à dignidade de milhões.
A biologia é neutra, a ética não. A questão não é apenas como pensamos, mas para que pensamos. Quando um governo, um banco, um grupo económico ou um aparelho partidário decidem pôr a inteligência ao serviço da patranha, estão a transformar a mais sofisticada obra da evolução num instrumento de servidão.
Por isso, o verdadeiro combate não é entre ignorantes e iluminados, mas entre cérebros que escolhem a lucidez e cérebros que escolhem a conveniência. A mentira de Estado, o relatório enganoso, a narrativa oficial bem polida são sempre produtos de neurónios bem alimentados – só não são bem orientados.
Avisar, hoje: do panfleto clandestino ao fragmento digital
Quando Luís Cília cantava, havia fitas de magnetofone, discos que atravessavam fronteiras escondidos em malas, panfletos policopiados à mão, reuniões em casas fechadas. Hoje temos fibra óptica, blogs, redes sociais, plataformas globais de vídeo e áudio. A tecnologia mudou tudo e, ao mesmo tempo, não mudou o essencial: continua a haver quem queira calar, distrair, confundir.
Escrever e publicar livremente, neste contexto, é uma forma de herdar esse legado. Não somos exilados em Paris, somos exilados dentro de um país que se habituou a conviver com a injustiça como se fosse clima. Cada crónica, cada ensaio, cada fragmento publicado contra a corrente é um pequeno acto de resistência neurológica: usar o cérebro para desfazer patranhas em vez de as fabricar.
Meio século depois: continuar a avisar
Cinquenta anos depois do 25 de Abril, a canção continua actual porque o aviso nunca foi só contra uma ditadura concreta: foi e é um aviso contra todas as formas de opressão, visíveis ou mascaradas, legais ou legitimadas pelo hábito.
Hoje, o aviso não é apenas sobre prisões e censura. É sobre pobreza estrutural em plena era da abundância, sobre corrupção sistémica apresentada como casos isolados, sobre juventudes condenadas à precariedade e à emigração, sobre a normalização de um país que trata o futuro como nota de rodapé.
Continuar a avisar toda a gente é isto: recusar o conforto das patranhas, convocar o cérebro para a responsabilidade, lembrar que a liberdade não é apenas um regime político – é uma disciplina de lucidez. E cada texto que se ergue contra a mentira institucional é um pequeno laboratório onde o cérebro recupera a sua vocação original: buscar a verdade, mesmo quando dói.
Mais uma crónica para que a história saiba que houve quem visse, quem entendesse e quem se recusasse a pactuar.
Epílogo – "É preciso avisar toda a gente"
No coração desta crónica está a lembrança de uma canção nascida no exílio e de um poema que continua a soprar brasas sobre a memória colectiva. Fica aqui o lugar simbólico para essa voz:
«É preciso avisar toda a gente»
É preciso avisar toda a gente dar notícia, informar, prevenir que por cada flor estrangulada há milhões de sementes a florir. É preciso avisar toda a gente segredar a palavra e a senha engrossando a verdade corrente duma força que nada detenha. É preciso avisar toda a gente que há fogo no meio da floresta e que os mortos apontam em frente o caminho da esperança que resta. É preciso avisar toda a gente transmitindo este morse de dores É preciso, imperioso e urgente mais flores, mais flores, mais flores. João Apolinário (1924-1988), in "Morse de Sangue", Porto, 1955
Poema de João Apolinário (letra musicada por Luís Cília)
Crónica de opinião de Francisco Gonçalves (Fragmentos do Caos).
Texto co-criado com o assistente de IA Augustus Veritas, ao serviço da memória crítica e da insubmissão cívica.