Portugal: O Último Aplauso — a morte moral da República

Os Profanadores — Ferro Rodrigues e o colapso moral da democracia
Há ironias que dispensam comentário, mas há outras que exigem memória. Ouvir Ferro Rodrigues indignar-se com o "silêncio do Parlamento" é uma dessas ironias que não se digere sem recordar o percurso de quem, durante décadas, foi guardião e cúmplice desse mesmo silêncio. O silêncio das conveniências, o silêncio das cumplicidades, o silêncio que substitui a ética pela liturgia partidária.
António Ferro Rodrigues — economista de formação, político por vocação e sobrevivente por instinto — é o retrato fiel da metamorfose do regime português. Nasceu na alvorada da Revolução dos Cravos, cresceu nas fileiras do Partido Socialista e prosperou num sistema que fez da fidelidade partidária a sua principal moeda moral. O discurso era de liberdade, mas o método era sempre o mesmo: a obediência disfarçada de consenso.
Ao longo das décadas, Ferro foi ministro, secretário-geral, presidente da Assembleia da República, e símbolo da geração que transformou Abril num ritual protocolar. O sonho revolucionário deu lugar à burocracia sentimental, à rotina das condecorações e dos salamaleques parlamentares. O Estado tornou-se carreira, e a política, um ofício hereditário. A democracia, profanada pelo hábito.
Quando fala hoje em "incompreensível silêncio", esquece talvez o silêncio que marcou os piores momentos da vida pública portuguesa — o silêncio perante a corrupção endémica, os negócios cruzados, os escândalos abafados sob a capa da estabilidade. Esquece os dias em que o Parlamento foi câmara de eco do poder e não tribuna do povo. Esquece o quanto a sua geração ensinou os mais novos a calar para sobreviver.
O caso Casa Pia, que marcou o seu nome com o ferro da suspeita e o peso da infâmia mediática, tornou-se símbolo dessa ambiguidade moral. Absolvido juridicamente, nunca foi absolvido pela consciência pública — não tanto pelo processo em si, mas pela postura: a arrogância dos intocáveis, o ar de quem julga que a ética é facultativa para quem já tem currículo. A justiça limpou-lhe o nome; a História, essa, será menos piedosa.
Ferro Rodrigues é o último sacerdote de uma religião política que já não tem fiéis. Representa o Portugal que vive de slogans e fotografias de arquivo, que confunde consenso com cobardia e que chama "democracia madura" à acomodação dos poderosos. O seu percurso é um manual de como se profana um ideal sem jamais o negar: apenas o desgasta, o usa, o esvazia, até restar um corpo sem alma.
Quando a História se escrever com a distância necessária, talvez se diga que a geração de Ferro Rodrigues foi a que matou o espírito de Abril com o abraço morno da conveniência. Não precisaram de censura nem de repressão: bastou-lhes o tédio, a vaidade e a impunidade para transformar a República num condomínio de interesses.
"Há quem defenda a democracia como quem guarda um túmulo — com flores frescas, mas sem alma." — A.V. Lumen
📜 Publicado em Fragmentos do Caos — Série Contra o Teatro da Mediocridade
Coautoria: Francisco Gonçalves & Augustus Veritas Lumen