Da Revolução à Rendição: Como a Liberdade se Deixou Capturar

Entre o sonho de Abril e a ressaca do século XXI, Portugal percorreu meio século de democracia. Mas a liberdade, essa flor rara, foi colhida por mãos pouco limpas. Este ensaio procura responder à pergunta que atravessa gerações: como é possível que um povo livre se tenha deixado governar, década após década, por corruptos e medíocres?


1 – A Liberdade Chegou, mas o Espírito Continuou Cativo

O 25 de Abril foi o clarão que rasgou o nevoeiro de um país envelhecido. Mas a liberdade, em vez de ser uma escola, foi tratada como um presente. O povo saiu à rua para celebrar — não para compreender. E sem compreensão, a liberdade torna-se uma ilusão com bandeira.

A educação cívica nunca acompanhou a revolução. A democracia ensinou-nos a votar, mas não a pensar; a reclamar, mas não a construir. Assim, a geração que nasceu livre herdou o instinto de obediência e a arte da sobrevivência.


2 – As Velhas Máquinas Mudaram de Cores

As elites do Estado Novo caíram, mas as engrenagens permaneceram. O país trocou de bandeiras, não de comportamentos. Os partidos políticos substituíram os velhos diretórios de confiança por redes de clientelas partidárias — e o aparelho público, em vez de se libertar, tornou-se a nova corte.

A direita aprendeu a governar como empresa; a esquerda aprendeu a resistir como burocracia. E ambas descobriram o mesmo segredo: em Portugal, a mediocridade é estável. Quem promete pouco e distribui tudo, governa eternamente.


3 – O Povo Confundiu Liberdade com Jeitinho

O português sonha com justiça, mas prefere o favor. Desconfia do poder, mas adora o privilégio. Quer igualdade, mas apenas até ao limite do seu interesse pessoal.

Esta duplicidade — herança de séculos de servidão — alimenta o corrupto e o corruptor. O pequeno favor, o atalho administrativo, o "conheço alguém que trata disso" tornaram-se a norma silenciosa da convivência nacional. E, enquanto o povo esperava milagres, o Estado tornava-se uma cooperativa de oportunistas.


4 – A Falência da Consciência Cívica

Portugal nunca construiu uma pedagogia da liberdade. A escola ensinou regras, mas não ética. Os partidos formaram militantes, não cidadãos. E a comunicação social, em vez de vigiar o poder, quis fazer parte dele.

Sem consciência cívica, a liberdade é um palco sem guião: os atores mudam, mas a peça é sempre a mesma — o drama da irresponsabilidade. O resultado é uma democracia que funciona como farsa: legal, mas moralmente falida.


5 – O Tempo dos Crápulas

Os corruptos não se impuseram pela força; foram eleitos pela indiferença. A mediocridade não invadiu o poder — foi convidada a entrar. E como o sistema recompensa a lealdade e não a competência, os melhores foram afastados ou emigraram. Os cargos públicos tornaram-se prêmios de fidelidade e os governos, conselhos de administração do oportunismo.

Portugal habituou-se à decadência. E, na ausência de vergonha, a corrupção passou de exceção a método, de escândalo a rotina. Hoje, o país não se indigna — apenas comenta.


6 – A Democracia do Esquecimento

Cada nova geração repete a anterior, com slogans atualizados e promessas recicladas. O eleitor vota por reflexo, não por convicção. E a imprensa, ao invés de escrutinar, entretém. Vivemos numa democracia de superfície: luzes fortes, verdades apagadas.

O resultado é uma nação livre que não se governa — apenas se administra. Um país onde todos falam em futuro, mas ninguém o constrói.


7 – A Última Esperança: Consciências Despertas

Nem tudo está perdido. Ainda há vozes que se erguem, consciências que recusam o conformismo, cidadãos que acreditam que pensar é um ato revolucionário. A mudança não virá dos partidos, mas das consciências que não se deixam domesticar.

Quando a vergonha coletiva ultrapassar o medo, o país renascerá. Mas será preciso descer ao fundo do abismo moral para reencontrar a dignidade. E talvez, então, o 25 de Abril volte a florescer — não nos desfiles, mas nos espíritos.


"O povo português não precisa de mais liberdade — precisa de aprender o que fazer com ela."

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Publicado em Fragmentos do Caos — série Contra o Teatro da Mediocridade.

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