O Presidente das Palavras — Marcelo e a República dos Espelhos

"É preciso estar à altura, na prática política e constitucional, dos valores da República." — Marcelo Rebelo de Sousa, nota presidencial de 5 de Outubro de 2025

Há homens que vivem da palavra como outros vivem do vinho: quanto mais a bebem, mais se embriagam com o som da própria voz. Marcelo Rebelo de Sousa é o sumo pontífice dessa liturgia verbal — um orador consumado, capaz de erguer uma catedral de retórica sobre o nada.

Neste 5 de Outubro, o Presidente não discursou. Limitou-se a deixar uma nota no site da Presidência — um eco, um murmúrio, um reflexo. Falou de valores, de República, de prática política e constitucional. Palavras impecáveis, neutras, estéreis. Um vocabulário que já não pertence à vida, mas ao ritual de um poder que se repete a si próprio até à exaustão.

Marcelo é o mestre das boas intenções ditas tarde demais. O seu estilo é o da contenção afetiva e do gesto simbólico: abraça as vítimas, visita incêndios, consola na televisão. O país chora, ele comenta. O país arde, ele observa. O país desespera, ele declara. É o Presidente que tudo diz — e, por isso mesmo, nada faz.

A sua presidência é uma encenação perfeita do regime português: aparenta vitalidade, mas vive da aparência. Marcelo transformou o cargo máximo do Estado num espelho polido onde se contempla, e onde o país, cansado, já só vê o reflexo do tédio político. A sua presença constante é uma forma de ausência: ocupa todos os espaços para que nenhum gesto real se imponha.

Quando fala em "estar à altura dos valores da República", esquece que há alturas que não se medem em discursos, mas em decisões. Estar à altura implicaria, talvez, confrontar a corrupção instalada, exigir transparência, defender o cidadão contra o aparelho — e não apenas elogiar, comentar e reconciliar tudo com tudo. Marcelo é o professor que dá vinte valores ao próprio discurso e acredita ter passado o exame da História.

A sua figura pública é a metáfora de Portugal: simpática, culta, fotogénica e inócua. Representa uma República onde a palavra é anestesia e o comentário, sucedâneo de ação. O país não tem Presidente — tem cronista residente.

O perigo não está no que diz, mas no que o seu estilo perpetua: a ilusão de que a moderação é virtude, de que o consenso é coragem e de que a simpatia é liderança. Marcelo fala da República como quem recita uma oração por um morto que ainda respira. É o guardião dos espelhos: reflete tudo, mas não ilumina nada.

"Nada é mais perigoso para a verdade do que o homem que acredita que falar já é agir." — A.V. Lumen

📜 Publicado em Fragmentos do Caos — Série Contra o Teatro da Mediocridade
Coautoria: Francisco Gonçalves & Augustus Veritas Lumen

🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
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