O Enigma de Joe Berardo: O Homem, o Império e o Bilhão que Faltou

Este artigo integra a série "Contra o Teatro da Mediocridade" e mergulha no labirinto de uma das histórias mais intrigantes da finança portuguesa contemporânea — a de Joe Berardo, o colecionador de arte que deve quase mil milhões de euros aos bancos públicos e privados, e que ainda caminha lentamente pelos corredores da justiça.


1. O Império de Ouro que Cheirava a Fortuna

José Manuel Rodrigues Berardo nasceu em 1944, na ilha da Madeira. Em jovem emigrou para a África do Sul, onde construiu fortuna no setor mineiro — ouro, diamantes, vinhos e casinos. O seu regresso a Portugal coincidiu com a vaga de modernização financeira dos anos 1990 e 2000, e com uma certa ingenuidade nacional: a crença de que o sucesso individual era sinónimo de genialidade empresarial.

Berardo trouxe consigo o charme do self-made man e a ambição de um império. Colecionava arte, comprava quintas e fazia-se ouvir nos corredores do poder económico. A sua entrada no Banco Comercial Português (BCP) marcou o início do mito e do desastre.


2. O Buraco Dourado — Como Tudo se Afundou

No auge da bolha financeira, Berardo contraiu empréstimos gigantescos na Caixa Geral de Depósitos, no BCP e no BES. As quantias, somadas, rondavam o milhar de milhão de euros. Com esse dinheiro, comprou... ações do próprio BCP. Era a era dos "assaltos amigáveis" e das guerras de acionistas.

Quando a crise de 2008 rebentou, o valor das ações evaporou-se — e as garantias dadas (em particular a Coleção Berardo) revelaram-se de liquidez ilusória. A dívida ficou, os bancos tremeram e o país descobriu que o génio era, afinal, um funâmbulo da finança.

Ano Evento Importância
2006–2007Créditos massivos da CGD, BCP e BES para compra de ações do BCPInício da alavancagem perigosa
2008Crise financeira global; desvalorização drástica das açõesGarantias tornam-se quase inúteis
2017Penhora de peças da Coleção Berardo pelos bancosPrimeiro sinal visível de colapso
2019Audição no Parlamento e processo executivo conjunto dos bancosExplosão mediática e jurídica
2021Detenção de Berardo por suspeita de burla qualificadaJustiça entra finalmente em ação
2025Acusação formal do Ministério PúblicoFase pré-julgamento criminal

3. O Labirinto das Sociedades e das Garantias

Para entender o "milagre" Berardo, é preciso seguir o dinheiro através de um emaranhado de entidades: Fundação José Berardo, Associação Coleção Berardo, Metalgest, Museu Coleção Berardo, e mais algumas satélites de nome técnico e alma opaca. O resultado? Um labirinto onde cada porta leva a outra empresa, e cada empresa a uma parede de vidro jurídico.

Entidade Função / Papel Situação
Fundação José Berardo (FJB)Detentora de património e ativos financeirosEnvovida nas dívidas e penhoras
Associação Coleção Berardo (ACB)Proprietária das obras de arteObras arrestadas e sob guarda do CCB
MetalgestSociedade de investimentos e operações financeirasExecutada pelos bancos em 2019
Museu Coleção BerardoEspaço público de exposição das obrasPermanece aberto, mas sob gestão do Estado

4. Justiça Lenta — e o País que Esquece

Em julho de 2025, o Ministério Público finalmente acusou Joe Berardo de burla qualificada e branqueamento de capitais. Mas o país, cansado e distraído, já quase não reage. O homem que deve mil milhões ainda não foi julgado, e continua a ser visto como uma figura pitoresca de um Portugal que perdoa o escândalo mas não a pobreza.

A lentidão da justiça é a mais fiel metáfora da cultura política portuguesa: processa-se o banal com rapidez e o colossal com lentidão reverente. Enquanto isso, os bancos públicos, alimentados pelos impostos, continuam a tapar buracos com o suor dos contribuintes.


5. Epílogo — A Ironia da Arte

A Coleção Berardo continua arrestada, exposta no Centro Cultural de Belém, visitada por milhares de pessoas. Cada quadro é, paradoxalmente, uma hipoteca moral: obras-primas que agora servem de lembrança silenciosa de um tempo em que o crédito era infinito e a vergonha, opcional.

Berardo não deixou apenas um rasto de dívidas — deixou um espelho. E nesse espelho o país vê-se: crédulo, deslumbrado, incapaz de distinguir o génio do oportunista.

— Augustus Veritas & Francisco Gonçalves

Este artigo é parte da série "Contra o Teatro da Mediocridade" publicada em Fragmentos do Caos.

🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
👁️ Esta página foi visitada ... vezes.