O País das Batatas — Crónica de uma Corrupção Sem Data de Validade

Há histórias que valem mais do que mil relatórios da Procuradoria. Histórias que, por si só, explicam um país inteiro. Portugal tem essa vocação antiga: transformar a batata em moeda, o truque em talento e o oportunista em herói popular.

Corria o ano de 1965, no início da guerra colonial. No norte de Angola, um jovem oficial de intendência chamado Valentim dos Santos de Loureiro geria os aprovisionamentos da messe dos oficiais — a cantina dos senhores da guerra. Entre tabelas de fornecimento, faturas e barris de batatas, descobriu-se um pequeno grande esquema: o militar inflacionava os preços, negociava com comerciantes civis e fazia negócios paralelos em nome da farda.

O caso — conhecido mais tarde como "O Caso das Batatas" — subiu a cadeia de comando e chegou a Lisboa. A Justiça Militar, ainda com o selo frio da disciplina salazarista, agiu. O jovem alferes foi punido disciplinarmente e afastado da vida militar em 1967, acto que equivalia à expulsão moral das fileiras. Era o fim da carreira. Mas, como tantas vezes em Portugal, os castigos são apenas intervalos do sucesso.


O Milagre de Abril

Decorrida quase uma década, chegou o 25 de Abril de 1974. Entre hinos e cravos, também se abriram as portas da amnistia. Valentim Loureiro — que a justiça militar afastara por falta de probidade — reapareceu, reabilitado, conseguindo ainda ser promovido a major, e logo passado novamente à reserva, em 1980. O país libertava-se de uma ditadura, mas mantinha o velho vício da conveniência: quem soubesse mover-se entre os ventos políticos teria sempre um lugar à mesa.

A partir daí, o antigo intendente das batatas fez carreira no negócio e na política local. Foi presidente da Câmara Municipal de Gondomar durante 40 anos, dirigente do Boavista Futebol Clube (1978–1997) e um dos homens mais influentes do futebol português, símbolo de um país que confunde astúcia com mérito e popularidade com virtude.


Da Messe à Câmara

O mesmo homem que fora sancionado pela ditadura, seria depois absolvido pela democracia, condecorado pelos votos, e blindado pela influência. O Estado que o puniu por fraude acabou por o premiar com décadas de poder político e contratos públicos.

Entre 2004 e 2008, o "Major Loureiro" — como ficou conhecido — foi figura central no Caso Apito Dourado, detido pela Polícia Judiciária e acusado de corrupção, prevaricação e tráfico de influências. Foi condenado a três anos e dois meses de prisão com pena suspensa (Tribunal Judicial do Porto, 2008), por abuso de poder enquanto presidente da Câmara de Gondomar, mas as instâncias superiores reduziram ou anularam parte da pena.

Em 2009, a PJ investigou a origem de dez milhões de euros em contas offshore em nome dos filhos, segundo reportagem da RTP (Arquivos RTP). Em 2018, foi acusado novamente por participação económica em negócio, por arrendamento de imóveis à Câmara de Gondomar acima do preço de mercado (Idealista, 10.05.2018). E assim o círculo fechou-se: da batata ao betão, da messe à autarquia.


A Moral em Portugal é Reciclável

O "Caso das Batatas" foi o primeiro episódio documentado dessa ética de conveniência que moldou o país pós-revolucionário. A justiça militar da ditadura castigou; a justiça civil da democracia hesitou, prescreveu e esqueceu.

"Mudámos de regime, mas não de hábitos. Mudámos a Constituição, mas não a cultura. Continuamos a confundir esperteza com inteligência e poder com mérito."

Hoje, o velho autarca vive serenamente, reformado, respeitado por uns, temido por outros — símbolo de uma nação que nunca conclui o exame moral da sua própria história. E enquanto isso, as batatas do passado continuam a dar flor no campo fértil da impunidade.

"Em 1965, a ditadura puniu-o pela batata; em 1975, a democracia coroou-o pela esperteza."
Esperteza dele, e deste sistema sem vergonha, que ainda o soube agraciar com o grau de Comendador da Ordem do Mérito, por Mário Soares, a 18 de Setembro de 1989,[14] e condecorado com a Medalha de Mérito Desportivo, por Cavaco Silva, em 1990.

Fontes consultadas

  • Wikipédia (PT) — refere que Valentim Loureiro "fez duas comissões em Angola, onde em 1965 foi implicado no Caso das Batatas; afastado da vida militar desde 1967, reintegrado em 1980 e passou à reserva como Major."
  • Bancada.pt (perfil/biografia) — texto editorial com síntese biográfica: "teria sido julgado e condenado em tribunal militar por comprar batatas acima do preço, apropriando-se do excesso", no contexto de intendência em Angola. (Carece de documentação primária, mas confirma a tradição do episódio.)
  • Portal "Comunidades" (biografia) — repete a cronologia: comissões em Angola e implicação no Caso das Batatas em 1965. (Fonte secundária; útil como corroborativa.)
  • RTP Arquivos"PJ investiga negócios da família Loureiro".
  • Público — "Valentim Loureiro condenado no processo Apito Dourado" (Julho 2008).
  • Diário de Notícias — "Valentim Loureiro investigado até Janeiro" (2006).
  • Idealista News — "Loureiro acusado de beneficiar familiar ao arrendar casas à Câmara de Gondomar" (10.05.2018).
  • Wikipédia — entrada "Valentim Loureiro" (actualizada 2024).

«Em Portugal, o crime compensa — desde que seja praticado com um sorriso e votado em assembleia municipal.»

Francisco Gonçalves — Fragmentos do Caos
"A ética é a fronteira que Portugal ainda não atravessou."

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