De Silicon Valley a São Bento: O Código Fonte da Influência

A República S.A.: Ética em Falência Técnica
Série «Contra o Teatro da Mediocridade» — por Francisco Gonçalves
Imagem simbólica — o reflexo do poder digital sobre o Estado
O Caso em Ângulo Nítido
Bernardo Correia, até há pouco director-geral da Google Portugal, foi nomeado secretário de Estado responsável pela implementação da legislação europeia relativa à inteligência artificial e aos serviços digitais. Antes disso, era parte activa na empresa que agora passa a dever supervisionar. E, segundo dados públicos, mantém mais de meio milhão de euros em ações da Google — um dado que ultrapassa a mera coincidência.
O Governo indicou a ANACOM como autoridade nacional principal para supervisão do regulamento de inteligência artificial. No âmbito dos serviços digitais (Regulation (EU) 2022/2065 ou Digital Services Act), a ANACOM assume um papel de coordenação — enquanto a ERC e a CNPD continuam listadas como autoridades competentes para matérias específicas.
A Porta Giratória Digital
A transição de executivo de multinacional tecnológica para regulador estatal já não se limita ao "emprego no sector privado". Quando o regulado se torna regulador, o conflito deixa de ser hipótese e torna-se rotina. A ética pública, antes dever, converte-se em lógica de mercado: quantos ganhos posso manter enquanto regulador? Quantas acções posso "gerir" sabendo que a regra me observará fraqueza?
Ética = Bug do Sistema
Em Portugal, a ética pública tornou-se aquilo que o programador escondera no comentário «// FIXME»: algo que se ignora até gerar falha crítica. As autoridades reguladas permanecem no palco, as câmaras continuam filmando — mas o script foi reescrito pelos interesses que deveriam estar a ser vigiados. Os cidadãos, por seu lado, habituam-se ao silêncio cómodo da normalização: "Já que ninguém vê, porque me choca?"
"Quando a República se converte em S.A., até os reguladores se vestem de vested interests."
Visões para Uma Viragem Necessária
Ainda há tempo — o sistema ainda não caiu. Mas permanecer em piloto automático já não é opção. O caminho exige que a sociedade exija transparência real, conflito de interesses visível e sanitizado, e que a digitalização do Estado não se faça em modo "fusões de conveniência".
- Obrigar reguladores a publicar declarações completas de rendimentos e participações accionistas.
- Separar literal e fisicamente quem fiscaliza e quem foi fiscalizado — zero dívida pendente antes da nomeação.
- Desenvolver relatórios públicos trimestrais de "compliance ética" para órgãos regulatórios.
- Promover literacias críticas para que o cidadão digital perceba não só o "like", mas o mecanismo que o sustenta.
Um Estado em Código Aberto — mas Fechado à Vergonha
A democracia digital portuguesa corre o risco de se transformar numa República S.A.: departamentos públicos tratados como filiais das multinacionais tecnológicas, políticas públicas subordinadas a interesses privados. A fronteira entre servidor público e servidor de dados dilui-se até ao ridículo.
O problema não é apenas este caso — é o precedente. Hoje é a Google e a Microsoft, amanhã a Amazon, a OpenAI — todas, discretamente, com assento nas decisões que deveriam limitar-lhes o poder.
Publicado em https://www.fragmentoscaos.eu
Sugestão de Leitura:
"A Colonização Digital do Estado"