"Era velho… e deixou-se falecer"

Crónica de uma morte desassistida

Em Portugal, quando o INEM falha — e falha com consequências irreversíveis — há sempre um desfecho previsível, quase ritualístico: um relatório sóbrio, burocrático, assinado por entidades anónimas, que conclui serenamente que "tudo foi feito segundo as melhores práticas". E pronto, o falecido que descanse em paz… se possível, sem levantar problemas.

Na última ocorrência, como em tantas outras, uma vítima esperou. Esperou com dores, esperou com angústia, esperou com o coração em contagem decrescente. E o INEM… demorou. Porque havia outras prioridades, porque o sistema estava sobrecarregado, porque os algoritmos disseram que não era grave o suficiente. Quando chegou — se chegou — já não havia corpo que valesse a pena socorrer. Havia apenas um registo para arquivar.

"Era idoso. Deixou-se falecer."

Como quem diz: o problema não foi do sistema. O problema foi da vítima, que teve o atrevimento de morrer fora de horas.

Esta normalização do absurdo, esta maquilhagem constante do falhanço, esta arte de tapar buracos com PowerPoint e palavras ocas, tornou-se a grande especialidade nacional. Quando alguém morre por desassistência, a culpa é sempre de outra coisa: da idade, das comorbidades, do destino, do karma — nunca da negligência. Nunca do atraso. Nunca da desumanização dos serviços que deveriam, por vocação e obrigação, estar ao lado da vida e não da estatística.

O mais trágico? Já nem há escândalo.
As mortes desassistidas deixaram de chocar.
Tornaram-se ruído de fundo.
Colaterais de um sistema que se pretende perfeito… no Excel.

Vivemos num país onde se morre à espera,
onde a idade se transforma em atenuante da culpa institucional,
e onde a compaixão foi arquivada com as fichas clínicas.

Mas, atenção: tudo segundo as melhores práticas.

Artigo autoria de 📖 Francisco Gonçalves

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