Se as tecnologias de IT sempre foram — e continuam a ser — a minha primeira paixão, houve desde cedo outra que me despertou uma curiosidade insaciável: a filosofia. A razão prática e o espírito crítico caminharam lado a lado comigo, ao longo da vida.

Como disse Voltaire, "a filosofia pode não ajudar a fazer negócios, mas ajuda a suportar as perdas". E em complemento, ecoa a lição de Aristóteles: "a excelência não é um feito, antes um hábito".

Foi entre estas duas âncoras — a tecnologia como paixão transformadora e a filosofia como bússola interior — que enfrentei os desafios do meu percurso profissional. E poucos episódios ilustram melhor esse equilíbrio do que a minha passagem pela ICL Computadores Portugal.

Confesso, sempre abominei a mediocridade. Desde jovem, compreendi que o verdadeiro progresso nasce da ousadia, da competência e do esforço coletivo. E é por isso que guardo na memória, com um misto de orgulho e nostalgia, os primeiros anos da ICL Computadores Portugal, onde colaborei e trabalhei desde 1978.

Nessa altura, a empresa era uma brisa fresca a soprar no mundo da informática em Portugal. A inovação era o nosso pão diário, e a satisfação dos clientes não era um slogan de marketing, mas sim a bússola que orientava o nosso trabalho. Cada projeto era um desafio, cada problema uma oportunidade de aprender, e cada sucesso uma vitória partilhada em equipa.

Vivíamos um ambiente de entusiasmo. Havia uma chama que nos unia: acreditávamos que a tecnologia podia transformar a forma como o país trabalhava, e dávamos o nosso melhor para que assim fosse. Foi essa dedicação, esse profissionalismo e essa vontade de ir mais longe que fizeram a ICL crescer, tornando-se até ao final da década de 80 uma empresa respeitada, reconhecida e admirada pela sua capacidade tecnológica.

O projeto pioneiro no Porto

Já em 1991 tive o privilégio de coordenar um projeto que viria a ser um marco pioneiro em Portugal. Tratava-se da instalação das primeiras bridges de Ethernet, interligando três polos da Segurança Social do Porto — situados na Rua António Patrício, na Rua das Doze Casas e na Rua Miguel Bombarda.

Para muitos, falar em Ethernet era ainda linguagem de laboratório. Mas nós ousámos. Com o apoio de modems de 64 kbps, que na altura representavam o cume da alta velocidade, construímos uma rede que abriu caminho para a descentralização e modernização dos serviços públicos.

O projeto foi concluído com sucesso. Pouco depois, chegou-nos à empresa uma carta oficial do Centro Regional de Segurança Social do Porto, assinada por um vogal do Conselho Diretivo, onde se podia ler:

"Instalada que foi, com êxito, a ligação em alto débito entre os edifícios sitos em António Patrício, Doze Casas e Miguel Bombarda, não pode o Centro Regional de Segurança Social do Porto deixar de reconhecer o interesse manifestado e a colaboração prestada por essa empresa no desenvolvimento do projeto em questão."

Era o reconhecimento inequívoco de que tínhamos feito algo grandioso. Um testemunho escrito que provava o valor do nosso trabalho e o impacto que ele teve. Para mim e para a minha equipa, esse momento foi de legítimo orgulho: sabíamos que tínhamos deixado marca.

O declínio silencioso

Mas, paradoxalmente, dentro da ICL, esse sucesso não encontrou eco. A empresa, que no início da década tinha sido farol de inovação e profissionalismo, estava a mudar. Aos poucos, a chama deu lugar a um ambiente pesado, dominado por jogos internos e carreirismo mesquinho.

O foco deixou de ser o cliente — quem, afinal, sustentava tudo — e passou a ser o cliente interno: agradar à hierarquia, alimentar vaidades e proteger posições. A competência deixou de ser celebrada e passou a ser vista com desconfiança, quando não com hostilidade.

Recordo-me bem de uma reunião, realizada poucos meses depois da conclusão do projeto no Porto. A direção decidiu atribuir prémios e distinções. Mas os galardoados não foram os que ousaram, inovaram ou conquistaram reconhecimento de clientes. Foram premiadas banalidades, circunstâncias irrelevantes, feitos sem brilho nem impacto.

A carta da Segurança Social, ainda fresca, ficou esquecida numa gaveta. Nem eu, nem a minha equipa fomos referidos. Nesse dia, não consegui conter-me e pronunciei a frase que ainda hoje recordo:

"A direção da ICL acaba de fazer a perfeita apologia da mediocridade."

A saída inevitável

Dois anos mais tarde, cansado desse ambiente tóxico, pedi a minha demissão. Não podia continuar a compactuar com uma estrutura que se alimentava da mediocridade e ostracizava a competência.

Saí de cabeça erguida, com a certeza de que o verdadeiro reconhecimento já me tinha sido dado: estava naquela carta da Segurança Social, nos clientes satisfeitos, e na memória viva de termos sido pioneiros num Portugal que, timidamente, entrava na modernidade tecnológica.

O que ficou para trás não foi apenas um projeto de Ethernet em 64 kbps. Foi um símbolo — de como o mérito pode ser ignorado pelas estruturas hierárquicas, mas nunca apagado da história.


Por Francisco Gonçalves


Epílogo

Sinto que devo partilhar, com profundo orgulho, um pouco da minha história de pioneirismo nas Tecnologias de Informação e Telecomunicações, e neste caso, este capítulo da ICL Computadores Portugal.

Nas minhas muitas e prolongadas estadias no Reino Unido, fui insistentemente convidado para integrar equipas de desenvolvimento de software, em cargos de responsabilidade. Mas, movido por um entusiasmo quase visceral pela ICL em Portugal, declinei essas oportunidades em várias ocasiões. A escolha estava feita: o meu coração e a minha energia estavam na casa que ajudávamos a construir em Portugal.

A todos os que comigo colaboraram — direta ou indiretamente — com coragem, ousadia e aquela "genica" que tanto nos caracterizava, deixo aqui um abraço sentido de amizade e o reconhecimento pelas suas capacidades. Juntos, tornámos possível o impossível, erguendo projetos pioneiros que marcaram o futuro.

É certo que nada foi fácil: houve esforço, dedicação, luta teimosa, suor e noites de transpiração. Mas também houve responsabilidade, rigor e um inabalável sentido de serviço de excelência aos clientes.

Orgulho-me desse passado. Orgulho-me de termos acreditado, ousado e feito. Orgulho-me porque, nessa época, até os falhanços eram celebrados como parte da aprendizagem. Vivíamos o tempo em que os limites eram apenas pontos de partida.



"A mediocridade esvai-se e a excelência recorda-se."

Na imagem que se segue, mostra-se o original da carta recebida da direcção da Segurança Social Porto, após o projecto que envolveu a conversão de bases dados existentes em mainframe Univac da CNP, a implementação de bridges de 64 kbps, e muitas dezenas de sistemas DRS300 conectados ao mainframe ICL VME2900.

Aqui um grande abraço ao meu amigo Domingos Morais e à sua coragem e competência de sempre.

Da brisa fresca da excelência à apologia da mediocridade.

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