Crónica · Fragmentos do Caos

Oh vã glória de mandar

Um lusíada pós-moderno sobre medalhas fáceis, palcos fáceis e a difícil arte de merecer memória.

Belém já não ecoa de naus e marés; vibra de microfones e flashes. O palco é novo, a farda é outra, mas a liturgia é velha: medalhas que prometem eternidade e duram o tempo de um ciclo noticioso.

"Oh vã glória de mandar, oh vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama…"
— Luís de Camões, Os Lusíadas

Os heróis de ocasião chegam em caravana, entre entrevistas e patrocínios. Trazem golos, números e contratos; faltam-lhes mares, mapas e silêncio. A pátria, cansada, aceita o espetáculo: aplaude porque lhe pedem palmas, não porque lhe pedem futuro.

Confundimos palco com prova, farda com , faísca com fogo. E esquecemos que a grandeza não se decreta: constrói-se sem selfie, cumpre-se sem rótulo, prova-se sem clarins.


Enquanto isso, os que verdadeiramente constroem — na ciência, na sala de aula, na oficina, no laboratório — seguem anónimos, teimosos, persistentes. Não pedem condecoração: pedem condições. Não posam para a Câmara: iluminam a cidade.

Portugal, pátria cansada, não precisa de mais medalhas; precisa de obras que sobrevivam aos aplausos. Precisa dos que "da lei da morte se vão libertando" pela via justa: trabalho, génio, serviço, coragem.

E quando a espuma descer, que fique escrito: a fama é vento; a memória, pedra. E a pedra não se lixa com verniz — talha-se com verdade.

Artigo de Francisco Gonçalves in Fragmentos de Caos

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