Ao Desconcerto do Mundo — Camões em 2025

"Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; […] Os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos." — Camões, Obras

Camões, punhal e espelho

O poema é curto e letal: quem tenta ser justo penou; quem foi manhoso nadou em ouro. A última estocada — "assim que só para mim anda o mundo concertado" — é a ironia total: o mundo parece afinado apenas para punir quem não joga sujo. Quinhentos anos depois, a sensação mantém-se, agora com novos instrumentos: powerpoints com selo oficial, algoritmos de indignação e uma estética de compliance que mascara a ausência de consequência.

Sintomas de 2025 (em linguagem franca)

  • Governança ornamental: decisões que brilham no protocolo e falham no chão da fábrica, da escola e do hospital.
  • Justiça diluída no tempo: sem horizonte de decisão, qualquer regra vira sugestão.
  • Incentivos ao avesso: promover quem não arrisca, punir quem tenta construir.
  • Algoritmos da discórdia: a economia da atenção recompensa gritos, não soluções.
  • Capturas invisíveis: redes de conveniência que se eternizam em cargos e ajustes finos.

Sete chaves para reconcertar

  1. Transparência radical por defeito: contratos, agendas, minutas e métricas públicas em tempo real — não PDFs mensais enterrados.
  2. Métricas de mérito com dentes: objetivos trimestrais e consequências claras (prémio e sanção) para equipas públicas e privadas que gerem dinheiros públicos.
  3. Justiça a prazo certo: prazos máximos por tipologia de processo, com reforço de meios e automação auditável.
  4. Compras públicas pró-inovação: 10% do orçamento reservado a pilotos com PME/academia — fail fast, publicar resultados, escalar o que funciona.
  5. IA explicável e audível: algoritmos que impactam direitos têm trilho de auditoria, logs públicos e red teaming independente.
  6. Educação de caráter + ofício: ética aplicada, lógica, artes e oficinas no currículo; avaliar também a cooperação, não só o teste.
  7. Proteção a quem faz: vias rápidas para licenciar quem cumpre; prioridade absoluta a projetos com impacto mensurável em 12–24 meses.

Camões remix: o excerto no presente

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.

Do lamento à engenharia

O desconcerto não se cura com arengas: conserta-se com engenharia de incentivos. Quando a sociedade (transparência), mede (métricas), premia (mérito) e corrige (justiça célere), o "mar de contentamentos" passa a ter boias e bóias-frias para quem tenta afogar o bem comum. Não é poesia — é parafuso, calendário e prestação de contas.

Checklist cívico (48 horas)
  • Exigir publicação de dados operacionais do serviço que mais usas (SLA, tempos médios, filas).
  • Reportar formalmente um pequeno abuso (com prova e número de ocorrência) — e acompanhar.
  • Escolher uma escola/hospital/serviço e propor um piloto simples de melhoria com medição mensal.
  • Partilhar soluções (não só indignações) e dar visibilidade a quem entrega.

A moral do tempo não muda por decreto: muda quando o mérito deixa rasto e o vício deixa custos.

Coautoria: Francisco Gonçalves & Augustus Veritas (Lumen). Camões deu o diagnóstico; cabe-nos agora a oficina: medir, apertar, corrigir — até a Europa afinar outra vez.

🌌 Fragmentos do Caos: Blogue Ebooks Carrossel
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