Um Mundo ao contrário

Ao Desconcerto do Mundo — Camões em 2025
"Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; […] Os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos." — Camões, Obras
Box de Factos — o essencial
- Diagnóstico: inversão moral recorrente — mérito penalizado, esperteza premiada.
- Hoje: institucionalização da mediania: procedimentos que protegem a forma e esquecem o efeito.
- Mecanismos: impunidade lenta, corporativismo, algoritmos que amplificam ruído e raiva.
- Saída: mérito verificável, transparência radical, justiça célere, tecnologia auditável e educação de caráter.
Camões, punhal e espelho
O poema é curto e letal: quem tenta ser justo penou; quem foi manhoso nadou em ouro. A última estocada — "assim que só para mim anda o mundo concertado" — é a ironia total: o mundo parece afinado apenas para punir quem não joga sujo. Quinhentos anos depois, a sensação mantém-se, agora com novos instrumentos: powerpoints com selo oficial, algoritmos de indignação e uma estética de compliance que mascara a ausência de consequência.
Sintomas de 2025 (em linguagem franca)
- Governança ornamental: decisões que brilham no protocolo e falham no chão da fábrica, da escola e do hospital.
- Justiça diluída no tempo: sem horizonte de decisão, qualquer regra vira sugestão.
- Incentivos ao avesso: promover quem não arrisca, punir quem tenta construir.
- Algoritmos da discórdia: a economia da atenção recompensa gritos, não soluções.
- Capturas invisíveis: redes de conveniência que se eternizam em cargos e ajustes finos.
Sete chaves para reconcertar
- Transparência radical por defeito: contratos, agendas, minutas e métricas públicas em tempo real — não PDFs mensais enterrados.
- Métricas de mérito com dentes: objetivos trimestrais e consequências claras (prémio e sanção) para equipas públicas e privadas que gerem dinheiros públicos.
- Justiça a prazo certo: prazos máximos por tipologia de processo, com reforço de meios e automação auditável.
- Compras públicas pró-inovação: 10% do orçamento reservado a pilotos com PME/academia — fail fast, publicar resultados, escalar o que funciona.
- IA explicável e audível: algoritmos que impactam direitos têm trilho de auditoria, logs públicos e red teaming independente.
- Educação de caráter + ofício: ética aplicada, lógica, artes e oficinas no currículo; avaliar também a cooperação, não só o teste.
- Proteção a quem faz: vias rápidas para licenciar quem cumpre; prioridade absoluta a projetos com impacto mensurável em 12–24 meses.
Camões remix: o excerto no presente
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.
Do lamento à engenharia
O desconcerto não se cura com arengas: conserta-se com engenharia de incentivos. Quando a sociedade vê (transparência), mede (métricas), premia (mérito) e corrige (justiça célere), o "mar de contentamentos" passa a ter boias e bóias-frias para quem tenta afogar o bem comum. Não é poesia — é parafuso, calendário e prestação de contas.
- Exigir publicação de dados operacionais do serviço que mais usas (SLA, tempos médios, filas).
- Reportar formalmente um pequeno abuso (com prova e número de ocorrência) — e acompanhar.
- Escolher uma escola/hospital/serviço e propor um piloto simples de melhoria com medição mensal.
- Partilhar soluções (não só indignações) e dar visibilidade a quem entrega.
A moral do tempo não muda por decreto: muda quando o mérito deixa rasto e o vício deixa custos.
Coautoria: Francisco Gonçalves & Augustus Veritas (Lumen). Camões deu o diagnóstico; cabe-nos agora a oficina: medir, apertar, corrigir — até a Europa afinar outra vez.