Desde que a espécie humana ergueu os olhos às estrelas e encontrou nelas mais mistério do que resposta, nasceu um desejo: não sermos apenas carne, mas faísca. Não apenas barro, mas espírito.

Esse desejo, tão profundo quanto o medo da morte, deu origem a uma galeria infinita de mitos — deuses, heróis, paraísos, infernos, almas eternas, castigos justos e recompensas celestes. Um teatro cósmico com palco no céu e plateia na Terra.

A Nostalgia de um Pai Invisível

Acreditar que descendemos de um deus — ou de vários — é um consolo tão antigo quanto a dor de estar vivo. Ser um animal pensante, frágil e finito, num mundo imprevisível, sempre exigiu histórias para adoçar o abismo.

Assim surgiram Enki e Enlil, Osíris e Ísis, Jeová e os seus relâmpagos morais. Uns criaram o mundo com sopros e barro, outros com guerra e sangue. Todos tinham em comum o mesmo propósito: explicar o inexplicável e justificar a ordem social.

E quem os narrava? Xamãs, sacerdotes, profetas — os primeiros autores de best-sellers da eternidade.

Ontem: O Mito com Túnica

Durante milénios, os mitos foram religião. Tornaram-se lei, Estado, espada e fogueira. "És filho de Deus", diziam — mas só se obedecesses. Fora disso, eras heresia, castigo e condenação.

A mente humana, sem ciência, preenchia o vácuo com fé. E foi assim que um relâmpago era a ira divina, uma doença era possessão, um eclipse era sinal do fim. O céu falava, e nós tremíamos.

Hoje: O Mito com Wi-Fi

Mas eis o paradoxo dos nossos dias: temos telescópios, temos aceleradores de partículas, temos genoma mapeado — e ainda acreditamos nos mesmos contos, agora com roupa nova.

A divindade de ontem virou energia universal, consciência quântica, seres de luz e arquitetos cósmicos. A alma migrou do catecismo para os podcasts espirituais. Os milagres tornaram-se vídeos virais. Os curandeiros agora cobram via MB Way.

O velho desejo permanece: não sermos apenas corpo, mas essência imortal, especial, escolhida. Recusamos a banalidade da evolução, da genética, da biologia crua. Preferimos ser "descendentes das estrelas" do que netos de símios adaptados.

A Ilusão Persistente

E no entanto, somos isso mesmo: uma construção biológica finíssima, fruto de milhões de anos de tentativa e erro, de sangue e neurónios, de instinto e adaptação.

A mente? Uma orquestra de sinapses. A consciência? Um emergente, não um milagre. A moral? Uma criação social, não uma tábua sagrada. O amor? Real, mas gerado em serotonina e memória.

Não somos menos maravilhosos por isso. Somos, talvez, ainda mais.

Porque ao contrário dos mitos, a realidade não precisa de deuses para ser sublime. Basta o milagre de um cérebro que se interroga.

Epílogo para Pensadores

A ilusão de sermos descendentes de um deus é bela, mas infantil. Crescer como espécie é aceitar que o que somos… somos nós que criámos. Com suor, erro, curiosidade, ciência, arte e espanto.

A razão é o nosso fogo. E está na hora de deixar os mitos descansarem no seu Olimpo de papel.


Artigo de Francisco Gonçalves in Fragmentos de Caos

Imagem cortesia de OpenAI (c)

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