A Cegueira dos Altos, a Lucidez dos de Baixo

Publicado em 2025-06-11 08:12:17

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Crónica para um País que Não Existe
ou
“A Cegueira dos Altos, a Lucidez dos de Baixo”


Do poleiro dourado de Bruxelas, onde o ar é leve, as cadeiras são ergonómicas e os almoços vêm com sobremesa, desceu hoje à pátria o ex-primeiro-ministro António Costa — não fisicamente, que isso cansa, mas em verbo — para dar-nos uma lição: Portugal está bem, a economia é fantástica e o povo... é negativista.

Negativista, sim senhor.
Porque dizer que o ordenado mínimo é uma afronta à dignidade humana, é negativismo.
Porque reparar que metade dos jovens fogem do país como quem foge de um naufrágio, é negativismo.
Porque apontar que metade dos reformados mal consegue pagar a farmácia, é, claro, pura má vontade.

Costa, de lá do Olimpo europeu, confunde a economia com a contabilidade do topo da pirâmide. Aquela que não conhece prestações em atraso, filas nos centros de saúde ou a dança diária entre o fiado da mercearia e o saldo da conta. Fala de um país que só existe nos PowerPoints que alguém lhe passa pela manhã — entre um cappuccino e uma reunião sobre fundos de coesão que nunca chegam a coesão nenhuma.

Este Portugal “fantástico” é, na verdade, uma espécie de país de brinquedo, onde a estatística é o Pinóquio e o Excel o Gepeto.

Entretanto, cá em baixo, os portugueses de carne e osso, os que ainda têm nervos, olham para esta narrativa como se estivessem a ver uma novela venezuelana de má qualidade. Só que esta dá náuseas em vez de lágrimas.

Porque não há pior cegueira do que a de quem vê, mas finge não ver.
E Costa vê. Sempre viu. Mas escolheu o conforto do teatro — onde tudo é encenação — e abandonou o palco onde a vida real acontece.

Afinal, ele já está onde sempre quis estar: sentado em Bruxelas, com as mãos limpas da lama onde deixou o país atolado.
E agora chama os que ainda chapinham na lama de “negativistas”.

Ah, António... O teu positivismo é como perfume barato: tapa o cheiro, mas não lava a pele.
Falas de Portugal como se fosse um spa de luxo, quando é mais um pronto-socorro em greve.
Falas de otimismo como quem diz a um moribundo que a luz ao fundo do túnel é só o sol.

Mas Portugal, o real, o nosso, o de cada esquina onde a vida aperta, ainda respira. E talvez não tenhas percebido, António, mas esse povo de que falas com desdém já não acredita nas tuas palavras.
Já não compra discursos plastificados nem aceita sorrisos de quem não sabe o preço do pão.

Este povo não é negativista.
É lúcido. É ferido. E está farto.


Por Francisco Gonçalves in Fragmentos de Caos (c)

Imagem cortesia de OpenAI (c)