Transparência ou Contorno da Lei? A “Suspensão da Participação Social” e os Conflitos de Interesse na Política Portuguesa

Publicado em 2025-02-26 12:18:28

A recente polémica em torno da secretária de Estado das Pescas e a sua ligação à empresa Mobinteg trouxe à tona uma questão sensível: até que ponto os mecanismos legais em Portugal garantem que governantes não beneficiam de interesses privados enquanto estão no cargo?

O caso destaca uma aparente brecha na Lei das Incompatibilidades que pode permitir que políticos mantenham laços com empresas privadas, ainda que de forma temporariamente suspensa. A solução encontrada, a chamada “suspensão da participação social”, levanta dúvidas entre especialistas sobre a sua legalidade e eficácia.


O Que Diz a Lei?

A Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, regula as incompatibilidades e impedimentos de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. O objetivo é garantir que um governante não beneficia de decisões políticas que possam favorecer interesses próprios ou de familiares.

No entanto, a legislação permite que um governante suspenda a sua participação numa empresa durante o seu mandato, voltando automaticamente à sociedade ao deixar o cargo. Essa suspensão não exige registo público, sendo suficiente uma ata de assembleia geral da empresa.


A Questão da Transparência e os Riscos de Contornar a Lei

Vários especialistas questionam esta figura jurídica, nomeadamente Paulo Veiga Moura, advogado especialista em Direito Administrativo, que afirmou que nunca ouviu falar deste mecanismo. Segundo ele, a única forma legítima de um político afastar-se de uma empresa seria a liquidação da sua participação, algo que não acontece neste caso.

Outro ponto controverso é a falta de fiscalização:

A falta de clareza sobre os detalhes desta suspensão leva João Paulo Batalha, consultor em transparência, a classificar o mecanismo como um álibi mais do que uma verdadeira solução para impedir conflitos de interesse.


O Perigo do Precedente

Se esta prática for amplamente aceita, pode abrir espaço para que governantes continuem ligados a negócios privados sem um verdadeiro afastamento. Isso cria riscos como:

  1. Decisões enviesadas – Mesmo sem participação oficial, o governante pode favorecer políticas que beneficiem a empresa a que pretende regressar.
  2. Aparência de impunidade – O público pode perceber a política como um jogo de influências, onde leis são moldadas para proteger interesses privados.
  3. Falta de fiscalização – Sem um registo público da suspensão, qualquer verificação dependeria apenas da boa vontade dos envolvidos.

Em países como os EUA e o Reino Unido, políticos que possuem empresas ou investimentos de alto risco para conflitos de interesse são obrigados a transferi-los para um "blind trust", gerido por terceiros sem influência do titular. Em Portugal, a solução encontrada parece muito mais frágil.


Conclusão: Uma Solução Conveniente?

O caso da secretária de Estado das Pescas sugere que as leis portuguesas ainda não garantem uma separação real entre interesses privados e a esfera pública. A figura da "suspensão da participação social" parece um meio-termo dúbio, que permite que políticos saiam temporariamente de empresas sem nunca realmente deixá-las.

Se o objetivo da lei das incompatibilidades é impedir que governantes favoreçam negócios próprios, é urgente discutir se este tipo de "suspensão" cumpre essa função ou apenas a ilude. Sem maior transparência e fiscalização, o risco de que esta prática se torne um novo padrão de influência política disfarçada é real.

Francisco Gonçalves

Créditos para IA, chatGPT e Gemini (c)